A cara de "me conta"
Eduardo Coutinho, teatro documental, documentário ficcional, um festival de artes cênicas, novas amigas, uma cidade portuária e a Camila Pitanga correndo na esteira ao lado: Santos Special Edition
Sras, srs
Vim para Santos a trabalho, cobrindo o Mirada, um festival de artes cênicas bem maneiro, para o Sesc.
Eu estava com muito medo de ficar longe dos meus filhos e planejando chorar todos os dias porque eu pareço legal mas no fundo sou uma boba, mas como escreveu o Djowlenon na capa do disco dele vida é o que acontece enquanto você faz outros planos e aí a vida aconteceu né.
Então esta é a Santos Special Edition.
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Eu estou correndo de frente para o Monte Serrat sem sair do lugar.
A esteira da academia do hotel fica diante da janela, no 32º andar, de forma que se fosse mesmo possível correr na direção para onde me projeto, em uma linha reta imaginária de uns três quilômetros, provavelmente eu daria quase no topo do monte. Tipo aquele francês das cordas bambas que vão de um prédio a outro nas grandes cidades.
O hotel tem 33 andares e muita vista da cidade de Santos. A maresia consome muita coisa. Vejo guindastes do Porto no horizonte. Me lembro do livro do Mario Quintana que leio para os meninos, e chama os guindastes do porto (alegre?) de “domesticados dinossauros”.
O céu tá constantemente nublado desde que cheguei à cidade, e contra o cinza eu vejo um bando de pássaros enormes voando em círculos. Serão urubus ou gaivotas? Noto que o rabo deles parece uma tesoura. Lembro do meu pai, que nasceu em Bertioga, aqui perto, me ensinando a desenhar gaivotas quando eu era pequena: “tem que fazer um V na pontinha”. Acho que são gaivotas.
“Ao contrário do que eu temia”, escrevi para minha amiga F., “não estou chorando pelos cantos do festival nem no quarto do hotel sozinha à noite”.
Vejo a cara deles toda vez que pego o celular, configurado para exibir fotos dos meus filhos trocando o clique de hora em hora. Sinto saudades que às vezes são fisicamente doídas, alguma coisa sensível no estômago e na garganta. Recebo notícias, “o Dom está construindo a Estufa Gloriosa e o Milo pintou os dois braços e a barriga com canetinha, mas logo sai”; fico alegre e satisfeita que todos estão se divertindo, Ric está se divertindo, eu estou me divertindo (muito). Tenho conhecido tanta gente, ouvido tanta história, assistido tanta coisa, escutado tanto.
Estamos nós dois nos divertindo e cansados. Só que em lugares diferentes.
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Cruzei com a Camila Pitanga no hotel, 9h da manhã, sem maquiagem e usando qualquer roupa, saindo do café da manhã. Ela voltou para pegar alguma coisa esquecida e deixou o namorado, carioca simpático e bonitão, esperando no hall dos elevadores.
Foi um impacto o quanto ela é bonita, me lembrou quando eu vi a Demi Moore na mesa ao lado da minha em um restaurante tailandês em Los Angeles e você simplesmente não consegue acreditar que é ela mesma, nem que uma pessoa pode ser tão bonita assim de camiseta, jeans e nada na cara a não ser a própria cara.
Assim que a Camila virou a esquina do corredor para voltar às salas de café e eu passei pelo namorado dela, fiz aquela clássica cara de grito sem som para o meu amigo R. Uma cara que você faz para expressar surpresa, admiração e uma pitada de desespero enlouquecido, só que no mudo.
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No primeiro dia de cobertura do festival I. me mandou para um lugar no centro velho para acompanhar o ensaio de um espetáculo chamado “A Velocidade da Luz”.
“A Velocidade da Luz” consiste basicamente em reunir pessoas idosas da cidade, ouvir as histórias delas (sobre elas mesmas e sobre a cidade) e montar um espetáculo com isso. No fim, a montagem tem uma parte documental, em que os atores pedem para o público ler passagens de suas histórias, e uma parte ficcional, também entremeada de depoimentos reais de pessoas do elenco.
São umas 40 pessoas, a maioria 70+, 90% mulheres.
Entrei no ensaio pensando que ia ser uma coisa fofinha, ah, que legal, ouvir as histórias dos velhinhos, e fui ATROPELADA pela FORÇA DE VIDA e pela POTÊNCIA DA MEMÓRIA concentradas ali.
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A produtora da peça falou que as atrizes me amaram. Troquei zap com algumas. Elas me mandam mensagens. Ajudei uma a pegar um Uber para casa; ela tinha que colocar os dados do cartão de crédito no aplicativo (ela sempre pagava em dinheiro mas naquela manhã não tinha passado no banco); o carro já tava vindo e o pagamento estava na opção dinheiro; ela ficou nervosa “imagina, eu não tenho dinheiro, ai meu deus”; ofereci ajuda; ela me deu os cones de nutty bavarian que tava segurando para poder procurar o cartão na bolsa; nada de achar o cartão na bolsa; ela revira a bolsa nervosa; finalmente retira triunfante um pedaço retangular de plástico vermelho da bolsa; eu equilibro os DOIS cones de nutty bavarian nas mãos enquanto indico na tela do celular “agora a senhora tem que colocar o número do cartão aqui”; ela olha para mim meio incrédula e diz “mas você que vai ter que colocar, minha filha, porque eu não enxergo isso aí não”; devolvo os dois cones de nutty bavarian e pego o cartão de crédito de uma completa desconhecida e digito os números, incluindo o código de segurança, no aplicativo; é difícil achar o botão ADICIONAR porque ela usa o celular com visualização tipo 150% e o botão simplesmente desaparece da tela e eu não acredito que os UXs de aplicativos ainda não perceberam isso, porque acontece com a minha mãe e com a minha sogra também, e deve acontecer com uma porrada de gente); encontro o botão e o uber chega e ela embarca feliz, finalmente em paz com seus dois cones de nutty bavarian, que são a provável razão de ela não poder me acenar tchauzinho.
Eu também amei elas.
Cruzo com elas pelos arredores do Sesc, elas pegam minha mão, me beijam, querem conversar. Todas querem conversar. E as conversas são do tipo que em cinco minutos elas já me contaram o quanto ganham de pensão, quando o marido morreu, o que os filhos fazem, como amam os netos. Elas me contam as coisas mais importantes da vida delas, e eu fico muito agradecida por isso.
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Acho que eu tenho um pouco essa cara de “me conta”. Funciona na maior parte do tempo. Então elas me contam.
Para um jornalista ou qualquer pessoa que tenha gosto ou ganha-pão em ouvir histórias, ter cara de me conta e trabalhar com pessoas mais velhas costuma ser fácil, porque elas contam mesmo (a não ser que sua pauta seja entrevistar o Raduan Nassar).
É de fato muito impressionante o quanto da vida as pessoas te contam.
E sabe quem elevou a cara de “me conta” a um nível artístico, né? Ele mesmo, Eduardo Coutinho. Talvez a maior cara de “me conta” de todos os tempos. E as pessoas contavam mesmo.
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Pensando nisso, quando chego no hotel decido assistir a “Jogo de Cena”. Estou cobrindo um festival de teatro. As pessoas estão me contando a vida delas. Adoro Eduardo Coutinho. Nunca assisti a “Jogo de Cena”. Perfeito.
Não posso dizer que “Jogo de Cena” explode minha mente porque: a) seria uma tradução meio tosca de uma expressão gringa; b) já tinha muita dinamite depositada dentro dela nos últimos dias, com a minha primeira viagem a trabalho (e consequente distanciamento prolongado dos meninos) em anos, e com a peça e as histórias do elenco de “A Velocidade da Luz”.
Mas o documentário se deposita como uma nova camada e ao mesmo tempo como uma curva final para fechar um círculo. Quase todas as histórias que elas contam ali, no fim, são sobre filhos.
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Terminei de escrever esse texto e subi para treinar na academia do hotel. Academia vazia (só estamos eu e o tiozinho da manutenção dos aparelhos, que provavelmente vai nessa hora porque realmente quem é que vai fazer academia às 13h de uma terça né), tô terminando de fazer esteira e ouvindo o finzinho do episódio mais recente do Como Chegamos Até Aqui, Eleições Municipais Edition, quando ouço alguém abrir a porta.
Quando viro, a única outra criatura com tempo de coragem para fazer academia terça às 13h é… a Camila Pitanga. Escrevo para a minha mãe e é assim que ela me responde.
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Realmente muitas histórias que a gente conta, no fim, são sobre filhos, o que as torna também sobre mães.
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Todas as imagens deste texto são fotos que tirei dos ensaios de “A Velocidade da Luz” em Santos, exceto o retrato do Coutinho e o print da conversa com a minha mãe. Usei a AI Describe Picture para descrevê-las e o Translate para traduzir as descrições, que foram ainda editadas por mim.
Gente, eu GRITEI com a resposta da sua mãe. Perfeitaaaaa! hahahahahahaa
Se cruzo contigo aqui em Santos, faço cara de grito sem som na hora :)