café e, principalmente, cigarros
não me lembro qual grupo venceu a competição da 3ª série D do colégio são bernardo naquele ano de 1987
i’m back, bitches.
eu nunca vou embora de vez, né.
VIDA PASSADA
bertioga
toda vez que eu fico olhando bertioga no google maps sinto como se estivesse espionando alguém, como se eu tivesse sido trancada para fora do meu próprio passado. desautorizada. uma tristeza clandestina.
um lugar que eu conhecia desde antes de ter memória.
a memória do sal, do som e da água. do cheiro das flores que a gente chamava de palmas, a onipresença da serra no horizonte oposto ao mar.
eu não sabia o nome da flor (ainda não sei), não sabia o nome da rua onde ficava a casa antiga, que já era antiga quando eu nasci (ainda não sei). não sabia que a casa tinha sido construída pelo meu avô (ainda não sei se eu sei), mas não para a nossa família; para a família que depois se tornou a família “torta” do meu pai, e consequentemente a minha.
o lugar em que eu cresci e que não era a cidade, minha casa. o lugar que já era velho, as camadas de passado se misturam. ruas de areia, esgoto em canal, mata virgem em frente à casa, a balsa e o carro viajando pela areia da praia para chegar. selvagem. o som do mar.
a pracinha que tinha uma sorveteria onde a gente gastava o dinheiro do “bom princípio”. o homem misterioso parado em frente à janela, olhando para a mesa de carteado dos adultos dentro de casa. os lençóis com nomes coloridos de compositores clássicos. como cabia tanta gente, como se fazia tanta comida, como cuidavam de tanta criança? nem máquina de lavar roupa tinha.
mas tinha muita grama, muita chuva, as árvores e as flores da mata atlântica. o itatinga, que era mais antigo, muito mais antigo do que a casa, com sua usina de pedra e as casinhas ao modo inglês, o bonde passando ao meio. tinha o forte, que era muito mais antigo que o itatinga. as camadas de tempo, todas deitadas ali em mim (ou eu que me deitava nelas?).
palitos de sorvete, manteiga de cacau, fila no orelhão para telefonar para a avó. sorvete de flocos, prancha de isopor, mesada, gibis. papel, caneta, presépio. esperar o natal para comer os papais noéis de chocolate.
nada para fazer, tudo para acontecer. a gente adolesceu ali.
a serra, impávida, o limite distante do olhar. quando a gente subiu até a câmara d’água da usina, no itatinga, vimos a mata por dentro, chegamos às cachoeiras, olhamos lá de cima. um turbilhão de chuva invertida caindo em algum lugar do litoral. estávamos NA serra.
depois disso, sempre que eu olhava a serra, meu olho sabia o que tinha lá.
bertioga para sempre vai ser a cidade mais bonita da minha vida. a que eu mais senti. a que mais me falta. a cidade pra onde eu nunca consegui voltar. eu sou desenraizada de bertioga, e de lá me falta até o luto.
TODO DIA
café e, principalmente, cigarros
acender o cigarro no fogão com medo de queimar a sobrancelha. alisar o cigarro amassado, sempre o de maço e não necessariamente o de box, entre os dedos. equilibrar a bituca de pé até que ela apague sozinha. segurar a cinza naquele frágil equilíbrio até ela cair por conta (nem sempre em um lugar adequado). tentar apagar o cigarro mirando exatamente na trajetória da goteira da marquise onde você se encolheu para fumar na chuva. arremessar a bituca com um peteleco. acender meio torto e ficar observando aquela ilha de papel intacto se formando na ponta. disputar um cigarro com o vento. rasgar sem querer a tampa do box e conviver com uma caixinha que nunca fecha. rasgar sem querer um cigarro ao tentar enfiar o isqueiro dentro do maço. comprar de maço e reaproveitar um box vazio. fumar até quase o filtro. acender um no outro, mas apagar o segundo no meio para não se sentir tão mal. chamuscar o papel ao acender com um fósforo gigante. queimar o lábio depois de tragar tão rápido e tão fundo. arrumar um cigarro para alguém na rua. emprestar o isqueiro. perder o isqueiro. comprar outro isqueiro. descobrir três isqueiros na bolsa. o isqueiro nunca está lá quando você vai fumar. acender no fogão, tomando cuidado para não queimar a sobrancelha.
TODO DIA
meritocracia
faz uma semana mais ou menos eu tava dirigindo na rua tito depois de deixar o milo na escola. o dom comigo, nós rumo à escola dele. na descida, um cara fechou outro carro, possivelmente em uma distração.
pois o homem do carro fechado, um véio branco de terno a bordo de um reluzente audi Q5 – que, segundo me informa o webmotors, pode custar de R$ 366 mil a R$ 491 mil –, emparelhou ao lado do distraído, abriu o vidro e disparou um ataque verbal tão violento que me fez ficar em estado de alerta (eu sempre acho que numa briga de trânsito alguém vai sacar uma arma e deus me livre morrer de bala perdida no geral, quanto mais em briga de trânsito).
como o trânsito parou, o véio do carro de quase meio milhão teve bem uns dois minutos para xingar o outro, e usou-os em sua plenitude. nisso, um ônibus entrou na frente do Q5; a minha faixa andou e ele tentou embicar na minha frente, mas fiz questão de não dar passagem. ostensivamente. (talvez eu tenha feito uma cara de desprezo). o trânsito fluiu e seguimos.
POIS O VÉIO DO CARRO DE MEIO MILHÃO ME ALCANÇOU E JOGOU O CARRO DELE EM CIMA DO MEU, tirando uma fina lateral. com o meu filho dentro do carro.
eu fiquei muito puta, catei o celular, acelerei e filmei a placa dele.
ele notou, VEIO ATRÁS DE MIM e, já na avenida pompeia, emparelhou de novo me filmando ostensivamente.
quando o farol fechou, ele abriu o vidro e começou a gritar impropérios tipo “O FDP ME FECHOU VC SABIA QUE ELE ME FECHOU??? EU ESTOU CERTO etc”. percebi que o que ele estava defendendo era que, no fundo, ele tinha direito de fazer TUDO que ele fez: agredir pesado uma pessoa que ele não conhece, tirar uma fina violenta de um carro com uma criança a bordo e o pacote todo, PORQUE ELE TINHA SIDO FECHADO NO TRÂNSITO.
ou, em outras palavras, ele tinha o DIREITO de me fechar porque… ele tinha sido fechado.
um cara com uma dissonância cognitiva desse tamanho tá por aí em sp a bordo de um carro de meio milhão, e ainda tem fdp falando em “meritocracia”.
VIDA PASSADA
um dilema persistente
quando eu trabalhava no ig, um dos sites que ficavam sob minha responsabilidade editorial (embora eu não tivesse muita clareza do que isso significava, pelo menos não como eu tenho agora) era o ig gourmet. o nome é meio auto-explicativo e, não, naquela época essa palavra não tinha a conotação cretina que tem agora.
bom, na época do ig gourmet, entre as minhas atribuições estava a de abrir tíquetes no sistema de TI da empresa quando algo no site dava errado. então você entrava num sistema lá e criava uma reclamação, descrevendo o problema. às vezes os caras da tecnologia respondiam pelo sistema mesmo. se fosse muito urgente ou grave, eles ligavam no seu ramal (sim, eu trabalhei com ramal, ainda existe ramal? acho que não).
pois um dia, não me lembro porquê, o brodinho de TI me ligou por conta de um tíquete. e ele falou que tava ligando para falar do problema do ig gourméti.
eu levei alguns segundos para entender que site era (eu cuidava de outros cinco, mas também me faltou um pouco de inteligência elementar aí). logo que entendi, me vi em uma situação terrível: eu não podia falar mais o nome do site. não naquela ligação, porque se eu falasse a pronúncia oficial, “gurmê”, o menino podia se sentir corrigido, e nem sempre essa é uma sensação agradável, ainda mais quando você nunca viu a pessoa e quando se trata de uma palavra estrangeira, que ninguém tem obrigação de saber.
e se eu falasse do mesmo jeito que ele falou, eu simplesmente me sentiria uma farsa.
passei o resto da ligação procurando sinônimos ou metonímias: o site, a home, o ambiente de prod, a tela, o que tá no ar.
não foi difícil, nem a história foi marcante por isso. mas por essa sensação do dilema, que aparece toda vez em que me vejo de novo nessa situação.
VIDA PASSADÍSSIMA
o baú do arco-íris
quando eu tinha nove anos, a professora eliana dividiu a classe em cinco ou seis grupos. cada grupo ficou incumbido de criar um nome para si, e depois um cartaz que representasse aquele grupo e seu nome; os cartazes foram colados à parede e os grupos foram organizados em fileiras. tinha algum sistema de recompensa – estrelinhas que a professora colava ou desenhava de acordo com o cumprimento de desafios do tipo terminar a tarefa primeiro ou manter a fileira mais organizada, acho.
eu estava em um ano difícil. depois de uma adaptação dura na primeira série, eu tinha finalmente feito amizades e passado a me sentir mais segura na segunda. e daí, por alguma razão estranha que ninguém nunca me explicou – azar somente, talvez? – na terceira série eu caí na OUTRA classe. a classe oposta àquela em que estavam todos os meus amigos, conquistados a duras penas nos dois anos anteriores.
mas aí a gente tinha essa missão e eu não conhecia ninguém, mas fui acolhida pelo BAÚ DO ARCO-ÍRIS. quer dizer, baú do arco-íris foi o nome que nós demos para o nosso grupo; os primos lilian, mika e joni yamawaki, a fernanda frederico e eu.
os quatro já estudavam juntos desde a primeira série e eu não sei como fui parar na composição do grupo. mas fui.
nós sentávamos na última fileira, a mais longe da porta, encostada na parede. não era difícil estar no grupo. eles eram muito caprichosos; os asiáticos eram o próprio estereótipo da minoria modelo, como fui aprender muitos anos depois; os irmãos mais velhos estudavam no colégio bandeirante, todos tiravam notas altas, os pais de alguns trabalhavam (ou tinham trabalhado) no japão e as crianças eram donas dos mais fabulosos artefatos de papelaria que eu (e o resto da classe) já tínhamos visto. o baú do arco-íris ganhava muita estrelinha.
me lembro vagamente de irmos à casa de um deles – acho que da única outra gaijin, a fernanda, que tinha olhos claros e era uma princesa – para elaborar nosso cartaz. ele mostrava, bem, um baú. com um arco-íris saindo de dentro. na minha memória, era muito bem pintado e tinha alguma coisa de glitter. uma beleza, quando você tem nove anos. e o joni desenhava muito bem.
nosso principal competidor na classe era o CENTOPEIA COLORIDA, que tinha entre seus membros o ronaldo. o ronaldo era CLARAMENTE uma criança viada. e era inteligentíssimo, brilhante. assim como uma de suas colegas de grupo, uma menina que era uma força criativa, estabanada e palhaça – lembro de ela falar que a centopeia colorida que figurava no cartaz deles tinha 31 pés, e mostrar bem gaiata o 31º que ela mesma desenhara clandestinamente à caneta, uma perna fininha destoando do acabamento de contorno em canetinha das outras. acho que posso ver o ronaldo virando os olhos, resignado e divertido. mas pode ser minha imaginação.
não me lembro qual grupo venceu a competição da 3ª série D do colégio são bernardo naquele ano de 1987.
mas a roberta, que ainda é uma força criativa, estabanada e palhaça (mas tem muito mais domínio dessas naturezas todas), dois anos mais tarde virou minha maior companheira, e segue sendo minha mais antiga amiga. inclusive é quase minha vizinha aqui na zona oeste, straight outta sbc.
o ronaldo, o joni e a fernanda frederico, que quatro anos mais tarde seria ~pedida em namoro~ pelo menino por quem eu era (mais ou menos) platonicamente apaixonada, hoje só existem na minha memória. não tenho a mais vaga pista de onde foram parar. espero que sejam adultos felizes e tenham aprendido a dominar suas naturezas também.
a lilian e a mika eu achei nas redes sociais – em uma JOINT VENTURE de stalking com a roberta. elas me pareceram ter tudo a ver com as crianças que eram. não que sejam infantis ou as mesmas pessoas, mas parecem mesmo uma versão desabrochada de uma semente que tinha ali.
talvez eles achem a mesma coisa quando um dia se lembrarem do baú do arco-íris e decidirem me stalkear também.
talvez não.
Clarissa descobri que somos vizinhas de zona oeste e de memórias de bertioga! Em outra parte da cidade e em outro tempo, fiz minha infância lá e carrego as minhas memórias e de toda minha família que viveu por lá muito mais tempo que eu. Minha relação é diferente da sua mas é também um lugar importante na minha história :)
que alento te ler, minha querida!
amei essa edição nostálgica e confesso que invejei a leveza com que você descreve essas lembranças. ❤️