"desquitada e morando de favor"
sobre uma época em que eu era quase uma personagem infame do nelson rodrigues, mas um bairro me salvou.
ontem a newsletter não saiu porque eu DORMI. eu dormi das 20:30, quando botei o dom na cama, até as 23:55, quando o ricardo me chamou pela segunda ou terceira vez e eu finalmente concordei em levantar e escovar os dentes – para depois continuar a dormir, só que desta vez interrompida em duas ou três vezes pelo chorinho do meu principal cliente lácteo, que ainda acorda à beça, na maioria das noites, para mamar de madrugada (bom, isso explica porque eu desmaiei ontem, né?).
perdão pelo vacilo, mas não me arrependo de nada. dormir é o novo preto, ainda mais pra uma mãe de bebê.
e enquanto ontem tivemos sono, e um sonho profundo, luminoso e revelador, hoje temos um longo mergulho na minha relação com o bairro onde morei por longos e cruciais 13 anos da minha vida; um experimento científico com o nome do bebê e um dia na vida de liev tolstoi.
semana que vem, espero, eu melhoro.
e vocês já sabem: compartilhem, assinem, e tenham a bondade de manter a fé na minha pontualidade.
AINDA SOU EU
open letter to a landlord
“now you can tear a building down
but you can’t erase a memory”
— open letter to a landlord, living colour
ali por meados de 2007 as minhas posses se resumiam a uma escrivaninha velha, um desktop, algumas malas de roupas, um colchão estendido na sala de uma amiga minha, onde eu dormia, e metade de um palio vermelho (a outra metade era do meu recém-ex-marido).
não, pera. o colchão não era meu. era da roberta também, dona da casa onde eu passei a morar depois que me separei.
a casa da roberta ficava na belmiro braga, e cheirava a incenso e ervas. a roberta é bem macumbeira, né, e era minha melhor amiga desde que a gente tinha 11 anos. em 2007, estávamos com 29 – e esse foi meu primeiro ano como moradora do bairro de pinheiros.
eu cheguei em pinheiros com realmente quase nada além de minhas malas de roupa, meus modestos freelas fixos (incapazes de me custear um aluguel) e boas amizades, como a da roberta, que me deu guarida. ou do quinho, que de vez em quando aparecia lá para tomarmos um café na benedito calixto.
eu amava o bairro. minhas memórias dele até então se resumiam aos bares e baladas que eu gostava de frequentar na adolescência e de repente eu estava morando lá! pinheiros, comecei a descobrir, tinha várias camadas. tudo que era famoso em pinheiros, como a vida noturna, tinha um outro lado que me parecia completamente inesperado e interessante. era totalmente diferente de dia. tinha velhinhos sentados nos bancos do pão de açúcar, comparando ofertas nos folhetos. tinha os grafitis no muro do cemitério. tinha os comércios populares da teodoro. tinha cantos e muros e praças que eu não me cansava de descobrir.
alguns meses depois, quando arrumei um emprego (que, olhando de agora, era o suprassumo da precariedade, mas eu achava fantástico) e conheci o vlad, a gente brincava que eu parecia uma personagem infame do nelson rodrigues – desquitada e morando de favor. o emprego precário, somado aos meus freelas modestos, me permitiu alugar um apartamento em pinheiros. para efeito de comparação: somando tudo, eu comecei a ganhar uns R$ 2600 por mês. o aluguel, na simão álvares, custava R$ 850. ainda era 2007.
o meu primeiro apartamento em pinheiros tinha um quarto e zero vaga de garagem. era em um prédio antigo, de entrada modesta e bem bonita, uma porta de madeira e vidro e ferro. piso de taco e banheiro com azulejo azul calcinha. tanque de cimento e janela tipo guilhotina. cada coisa que eu comprei ou levei para aquele apartamento me fez feliz, assim como o bairro seguia me fazendo. eu gostava de andar pela rua morás, as árvores enormes fazendo um túnel de sombra; os jardins com muros de pedras cheios de flores exóticas.
meu segundo apartamento em pinheiros ficava na outra ponta da mesma rua. pinheiros, eu descobri, eram vários bairros em um só. lá eu já trabalhava em um emprego decente, com carteira assinada e participação nos lucros. alegrias proletárias. agora tínhamos dois quartos, vaga de garagem (a pior que eu já vi) e elevador. o sol se punha na janela da sala. em 2011, minha sobrinha com três meses de idade, o almoço de natal foi lá em casa e eu comprei um jogo de jantar decente (eu só tinha retalhos dos que ganhara no meu primeiro casamento, divididos pela minha ex-sogra entre eu e meu ex-marido em uma lógica particular – mas quem sou eu pra reclamar, eu que fui embora?).
eu continuava fazendo terapia em uma casinha na cardeal, vizinha a um predinho que tinha sido invadido e ocupado por famílias sem-teto. você descia uma escadaria enooooorme, longa, saindo daquele barulho insano da rua, e dava em uma casinha térrea com jardim e passarinhos. às vezes a graça esquecia de tirar o cadeado do portãozinho lá em cima, que era tão baixo que eu pulava; o fluxo sem fim de carros na cardeal, sei lá se alguém via ou não. cada coisa louca nesse bairro.
em 2012 mudei pro apartamento da francisco leitão. ali foi onde eu saí do meu emprego decente, que nos últimos anos vinha se mostrando consistentemente indecente, para me tornar a terceira contratada do buzzfeed brasil. ali foi onde meu filho nasceu. foi onde celebramos os 40 anos do ricardo com uma festa memorável. foi de onde eu saía para pular o carnaval de rua cada vez mais revivido de são paulo, foi onde minha cabeça mudou, minha vida floresceu e alguma parte do que eu sou se consolidou. acho que foi ali que eu amadureci, talvez.
e quando digo ali não é só o apartamento, é o bairro. os mercados em que eu comprava a comida da semana – do pão de açúcar da teodoro ao mambo da deputado lacerda à quitanda na mateus grou; a farmácia da esquina da cônego onde eu comprei o teste de gravidez que revelou que eu estava grávida do milo; o salão de beleza na fradique onde a cíntia me contava detalhes picantes da vida dela. a feira da mourato, onde uma vez eu tava indo com o dom e encontrei o gui na rua. o bar do biu, o gaia, o pitta.
depois, ainda por cima, o escritório do buzzfeed se mudou para lá, o que foi feliz e triste ao mesmo tempo: feliz porque eu podia almoçar em casa e amamentar meu filho; triste porque ali eu sabia que eu nunca mais ia sair do bairro.
mas eu saí do bairro.
e nem foi só porque eu não tinha a menor condição de bancar uma casa por lá do jeito que eu queria – no caso, com quintal e mais espaço – depois que meus filhos nasceram. foi também porque em algum momento, acho que ali por 2017 mais ou menos, eu comecei a achar o bairro… estranho. os restaurantes ficaram caros. meus amigos que queriam se mudar para lá traziam números absurdos dos preços dos aluguéis. lojas com chão de cimento queimado, neon na vitrine e um grafiti filosófico na porta cobravam 300 paus uma camiseta cinza mescla. e empreendimentos com apartamentos de 30 metros quadrados a R$ 1 milhão não paravam de subir. de repente pinheiros me pareceu, como eu já disse, o mais forte candidato a próxima vila olímpia. eu me sentia morando em um projac hipster.
acho ruim que tenha mais gente circulando pelo bairro, influencers tirando fotos em cada esquina ou pessoas de outras vizinhanças passando a tarde na rua dos pinheiros, almoçando e tomando sorvete? claro que não. acho ruim que o capital tenha cooptado o espírito do bairro DESCARADAMENTE, e agora comercialize a preços inflacionados demais uma espécie de estilo de vida que ficou associado ao lugar, mas do qual sobra muito pouco de fato.
em dezembro de 2020, há pouco mais de um ano, eu fechei pela última vez a porta do apartamento da francisco leitão. eu ainda me emociono de lembrar desse dia. descemos o elevador até o subsolo, entramos no carro e fomos embora, não sei se para nunca mais voltar.
eu sou muito feliz na minha casa nova, que tem coisas que eu nem sabia que precisava. o bairro ainda não conheço muito: com pandemia, um bebê pequeno e essa quantidade de pirambeira, não tem sido muito fácil sassaricar por aí. tenho saudades de pinheiros – não do bairro que deixei há um ano, mas do bairro que encontrei quando cheguei, que criei ao meu entorno e que foi cenário de uma parte tão definitiva da minha vida. esse eu acho que nunca mais vai voltar.
MATERNIDADE E OUTRAS PIRAS
me chame pelo meu nome mesmo
esses dias de manhã botei o milo no chão do quarto (agora ele é um bebê que senta e se arrasta e se locomove como pode) e abri as portas do guarda roupa para ele brincar de abrir as gavetas, e fui fazer xixi (naturalmente com a porta aberta para ficar vendo o nenê; mães: quem é sabe).
ele ficou meio atrás da porta do guarda-roupa aberta, e eu chamei ele lá do vaso pra ver o que estava acontecendo: “milooooo”, e ele pôs a carinha assim pro lado para me ver.
achei fofinho aquela carinha aparecendo de quina por detrás da porta aberta, e comecei a chamar e ele aparecia e ria para mim. virou um joguinho, e de repente eu pensei: “pô, ele aprendeu o nome dele!”
aí, munida do mais puro espírito científico, decidi chamar por outro nome para testar a hipótese; meti um “máááárciooooo?”…
…
…
…
e vi surgir a carinha simpática por trás da porta.
daí fiquei tentando explicar: “não! seu nome não é márcio, é milo!” e quando me dei conta eu estava argumentando com um bebê de oito meses enquanto continuava mijando.
deixei quieto.
mas o dom amou a história e passou o dia chamando ele de márcio.
AS PALAVRAS DOS OUTROS
Entrada do diário do Tolstoi em 25 de janeiro de 1851:
Esse post salvou minha alma hahahaha MARCIOOOOO
obrigadíssima pelo ataque de riso às 8h da manhã com o milo atendendo por márcio!
(e pela nostalgia daquele pinheiros que a gente amou tanto ❤)