deus me livre ser geek
não é possível que você se sinta especial porque gosta de um produto cultural que já vem com as marcações sonoras para dizer quando você tem que rir.
boa noite, senhores (ler com a voz da maria bethânia)
ok, eu sei, eu sei. NEM TODO GEEK. mas é que essa ostentação de gostos meio que anda me dando no saco.
essa semana eu estou trabalhando para um kct mas não vou reclamar. também não vou comemorar que ontem o bebê dormiu não a noite inteira, mas acordando APENAS uma vez à meia-noite e cinquenta e outra às cinco e cinquenta, e deus e uma porrada de mães sabem o tamanho dessa vitória.
então eu vou apenas fazer a já tradicional escalada dos temas de hoje: além da minha rabugice sobre o clube dos amantes de cultura pop (mas só daqueles que não percebem que gostar disso ou daquilo não garante nenhum selo de superioridade automático), temos uma reflexão enunciada de maneira a talvez ENOJAR os coaches do brasil, um flashback de quando o domenico viu o mar pela primeira vez (e eu tive a sorte e honra de ter sido justo o da bahia) e uma passagem bíblica muito importante sobre o papel da mulher.
resumindo, hoje eu possivelmente irritarei geeks, coaches e pastores – mas a história do domenico caindo de cara na areia, uma batatinha frita em cada mão e os olhinhos pretos no meio da cara empanada, parecendo uma maria farinha, deve ser suficiente para rebater tudo isso aí. espero.
no mais, tamos aí. assine. compartilhe. me mande um telegrama, uma carta de amor.
AINDA SOU EU
deus me livre ser geek
eu me lembro do dia em que descobri, com absoluto espanto, que eu era nerd (nerd, caso você tenha chegado agora ou quase isso nesse planeta, é como os geeks se chamavam antigamente).
era um dia como outro qualquer e eu estava participando de alguma discussão boba na redação do ig, aquele lugar fantástico onde a gente brincava de stop quando o publicador caía, listando categorias pouco usuais como “grãos e sementes” e “amigos do caio túlio” (o diretor de conteúdo da época, no caso).
e aí eu não sei qual era o tema do debate mas a certa altura eu concluí algo do tipo “bom, ainda bem que eu não sou nerd né” e o guss e o guto se entreolharam e RIRAM DA MINHA CARA.
na minha cabeça, nerds eram pessoas socialmente inábeis, bitoladas em assuntos acadêmicos, que serviam de saco de pancadas – literal dos outros ou figurado da vida, pelo menos no tocante à vida amorosa e social. meio que a galera do “a vingança dos nerds” (uma comédia sessão da tarde do gênero os humilhados serão exaltados, caso você tenha chegado neste planeta agora ou quase isso) mas sem a redenção cinematográfica clichê.
eles estavam considerando como nerds alguma coisa uns dois pontinhos melhor que isso.
ok, eu gostava de filmes e livros e até um pouco de quadrinhos. eu gostava de história (ainda gosto). eu corrigia mentalmente as crases erradas em anúncios no ponto de ônibus (ainda corrijo). e acho que ali naquela altura da nossa vida, nerd era mais ou menos isso mesmo, pessoas com interesses em cultura pop, artes ou outras coisas que os futuros padrõezinhos e as futuras loiras-odonto desprezavam.
então aparentemente, para meu espanto, eu era nerd. logo eu, que tinha feito tanto esforço para não virar a versão feminina dos caras do “a vingança dos nerds” depois de ter aprendido a ler aos três anos, ser a primeira aluna da classe no primário inteiro e pontuar acima da média no teste de qi, ao mesmo tempo em que tinha chorado ao longo de praticamente meu primeiro ano de escola INTEIRO porque tinha que ficar longe da minha mãe e era incapaz de falar com pessoas que eu não conhecia.
(todo meu esforço, particularmente depois do meu ano de terapia infantil e de ter conhecido a roberta, deu muito resultado e quem me conheceu já adulta acho que é incapaz de dizer que eu era esse tipo de criança).
por isso levei um tempo para me acostumar com o diagnóstico. e também para entender que a palavra nerd tinha sido sensivelmente ressignificada.
e então os nerds viraram geeks. e eu percebi um fenômeno associado novo (que talvez já estivesse por aí quando a gente ainda se chamava nerd, mas sei lá): de repente, gostar de alguma coisa parece que vinha embutida com um certo senso de superioridade intelectual, mais ou menos disfarçado. o que muito me espanta porque, se parar para pensar, não é possível que você se sinta especial porque gosta de um produto cultural que já vem com as marcações sonoras para dizer quando você tem que rir.
eu acho que o ser humano é meio que definido pela ansiedade de participação, né. aquele papo de “um ser social” e tal. e nesse sentido é muito gostoso encontrar pessoas com interesses parecidos com os seus, e desfrutar juntos desses interesses. é uma delícia participar de fenômenos culturais como assistir a “game of thrones” ou mergulhar nos bastidores da criação de uma saga como “o senhor dos anéis”. mas depois de uma certa idade, pra mim, não dá para ir a uma convenção de malucos usando uma fantasia de mago (no meu caso, essa certa idade acho que seria uns 8 anos).
sem falar na cultivada ilusão da superioridade intelectual por gostar de um produto cultural. tipo, bicho, não é que você é stan do james joyce ou faz parte da fanbase do walter benjamin (e mesmo se você fosse). você só gosta de gibi. e isso já tá ótimo, cultura pop também é cultura sem dúvida nenhuma. só não garante – como tampouco a cultura acadêmica ou enciclopédica – um certificado de inteligência automático.
eu, particularmente, tenho um pouco de constrangimento de ficar usando gostos como cartões de visita da minha personalidade. mas aí já sou eu que sou chata mesmo.
SÓ OUTRAS PIRAS MESMO
trabalhe com o que você ama e você nunca mais vai amar aquilo
teve uma sessão em que a minha terapeuta falou do paulinho da viola ter uma oficina de marcenaria secreta na casa dele. segundo ela, todo mundo que trabalha com arte pode acabar meio que confundindo a própria expressão com o ganha-pão, é inevitável. e por isso era legal ter um hobby nada a ver com o seu ofício, um lugar que virava uma salvaguarda dessa confusão.
eu fiquei com isso na cabeça pra sempre e esses dias fui googlar e descobri que, realmente, o paulinho tinha uma oficina – e ele comenta essa e outras coisas com aquela elegância da humildade que os grandes têm aqui.
quando eu era estudante, meu sonho era ser jornalista cultural. como metade da classe (a outra metade queria ser jornalista de esporte). mas as oportunidades de emprego que a vida me deu foram outras: estágio e depois coordenação em uma revista não muito jornalística de decoração. cobertura de férias em um suplemento. um site de quizzes, depois uma editora de televisão por assinatura. e de repente um portal feminino.
fazia uns dois anos que eu tava nesse portal quando percebi que adorava fazer aquilo. o trabalho, além de me permitir ter conhecido um monte de gente que abriu minha cabeça em vários níveis, me dava oportunidades legais, pagava minhas contas e, sobretudo, permitia que eu continuasse curtindo meus filmes, meus shows e meus programas de TV sem ter que pegar um bloquinho e ficar assistindo criticamente, pensando em como seria o texto, em qual seria o gancho etc – o que pode ter um apelo brilhante para o seu ego, no começo, mas não é possível que não fosse me cansar. eu certamente ia ter que aprender marcenaria. e infelizmente o paulinho ele não dá aulas.
mudei de trabalho e fui para um que me abriu ainda mais a cabeça e as portas. e depois para um que abriu outros tipos de portas na minha cabeça. e também a porta do apartamento do gilberto gil em salvador. nenhum deles foi como jornalista cultural. mas isso aí fica, quem sabe, pra outra edição.
MATERNIDADE E OUTRAS PIRAS
os dias em que o domenico viu o mar
hoje, para dar uma rebatida na velhice, resolvi fazer uma aula de stand up paddle. durava meia hora e eu pensei que se conseguisse ficar de pé por cinco minutos já consideraria o dia ganho.
* * *
o domenico foi apresentado ao mar aqui na bahia. e vir ao mar inclui uma série de outros elementos que igualmente nem sempre são bem-vindos — como por exemplo a areia.
nas minhas primeiras vezes na praia, minha mãe tinha que me remover do carro, me depositar em cima da esteira, me transportar ao mar no colo, me devolver na esteira e, na hora de ir embora, me levar da esteira pro banco do carro como se ela fosse uma empilhadeira e eu, a carga preciosa — preciosa demais para encostar num grão de areia, no caso, o que gerava não um berreiro, mas um desânimo tão profundo em mim que acho que estragava o passeio dela também.
o engraçado é que eu fui crescendo e amando a praia, e não demorou tanto assim para essa bobeira passar e o amor ficar. rapidamente eu deixei de ser a versão infantil da laurinha de albuquerque figueiroa de bertioga.
mas aí você deita descendência, né.
* * *
bom, por incrível que pareça, o dom amou a areia. mais que o mar, do qual ele ainda tá meio desconfiado.
não tem problema, tem tempo.
* * *
não bastasse, ele ainda viveu um episódio que mostrou o que realmente importa na vida dele.
com uma batatinha frita em cada mão, lá estava ele explorando os limites do gramado que termina na praia. mas havia um degrau e ele se inclinou demais, o que fez com que ele caísse DE CARA e EM CHEIO na areia.
corri pra ele já de olho na distância até a ducha mais próxima, agarrei o moleque e saí voada em direção à água, esperando o berro que costuma vir depois daqueles três segundos de silêncio (qualquer um que conviva com crianças sabe do que eu tô falando).
já tava acionando a ducha quando me dei conta de que o berro não veio. foi quando olhei para baixo e vi o domenico simplesmente de olho aberto, com a cara TODA EMPANADA, preocupado apenas em continuar comendo as batatinhas.
parecia uma maria farinha, a cara toda branca e só os olhinhos se destacando bem pretos.
eu tive que ARRANCAR AS BATATINHAS DA MÃO DELE já debaixo da ducha. as batatinhas, assim como ele, estavam empanadas e ensopadas, mas ele ainda achava que dava pra comer.
parece que esta criança tem lá suas prioridades.
* * *
não caí nenhuma vez no stand up paddle e remei 45 minutos. achei que eu ia rejuvenescer uns 15 anos depois disso, mas a verdade é que é muito fácil — ou seja, esporte de véio mesmo. pelo menos aqui nesse marzinho tranquilo da praia do forte, onde o domenico viu o atlântico pela primeira vez.
— publicado originalmente em 30 de junho de 2018 e escrito na praia do forte, bahia (eu não aguento essa foto, os cabelinhos dele soprados pelo vento da praia se misturando com as nuvens).
AS PALAVRAS DOS OUTROS
e agora, um dito bíblico:
— via @babithomaz, muito tempo atrás
três coincidências:
1: assunto da terapia hoje foi o famigerado "trabalhe com o que vc ama e nunca mais vai amar aquilo"
2: eu também era a laurinha de albuquerque figueiroa das areias em geral (inclusive do tanque de areia construído no quintal da minha própria casa)
3: o texto do dom conhecendo o atlântico foi publicado no meu aniversário
Maria Farinha hahahahaha.......me desculpe, mas ri com respeito, só imaginando a carinha dele numa versão infantil do smile 😀