bom, aí que eu queria voltar a escrever. fiquei um tempão pensando onde, depois um tempão pensando em sobre o quê. a resposta para a primeira questão acho que já encontrei: nessa newsletter. mas a resposta para a segunda ainda não, então eu vou escrevendo e vocês vão se inscrevendo, se der. gradicida.
hoje temos reflexões rasinhas sobre um pináculo da arte ocidental, uma crônica confessional do meu passado (na qual confesso, na verdade, coisas dos outros, mas a minha amiga me autorizou, tá?) e uma citação que nunca esqueci – e que curiosamente é sobre… memória.
sugiram coisas, se quiserem. ou convidados especiais. gosto de escrever como ofício, por encomenda, e sempre adorei trabalho em equipe.
aos poucos, quero crer, isso vai tomando forma. a única coisa diferente de uma newsletter decente, bem pensada e tradicional é que isso deve acontecer enquanto vocês estão vendo.
O PASSADO DOS OUTROS
pra mim deu
uma coisa que eu acho muito impressionante sobre a capela sistina é que deus tá ali com a bunda de fora e ninguém tá falando muito disso.
eu gosto que deus parece que criou o sol e a lua e na sequência falou “ok pra mim deu”.
* * *
a capela sistina tudo que podia dar errado ali deu, a começar pelo gênio do michelangelo. não o gênio de pintura, o gênio de temperamento. ele era o CÃO, mas tudo bem porque os papas dessa época também não eram exatamente gente boa.
ele não queria pintar a caralha do teto da capela sistina. ele queria esculpir. mas o papa julio II meio que obrigou ele. e ele e o papa julio, se tivessem facebook naquela época, iam ser aquele meme dos melhores amigos que terminam e voltam. e o michelangelo acabou pintando a caralha do teto da sistina, o que durou quatro anos e meio e deixou ele todo fudido (“e o pincel sobre o meu rosto goteja / o transforma em piso suntuoso / as costas entraram em minha pança / enquanto o traseiro é contraído como as ancas de um cavalo” são os simpáticos versinhos que ele escreveu a respeito da experiência, terminada em 1512).
mas o resultado é aquilo, né. segundo números de 2019, cerca de 6 milhões de pessoas vão por ano ano. dá uma brasília e uma salvador somadas. TODO. ANO.
(eu fico pensando quanto tempo levou para um fdp entrar na capela, olhar pra cima e falar “ali ficou meio torto, não?” – certamente MUITO menos tempo do que levou para alguém entrar, esticar o pescoço e exclamar atônito “ohhhhhh!”).
de repente, 500 anos podem diluir qualquer desgosto e transformar uma experiência de trabalho infernal em um pináculo da história da arte ocidental. você quase nunca consegue vencer o tempo, a não ser que você seja muito bom e muito fdp, uma combinação que o michelangelo dominava.
AINDA SOU EU
garotos & garotas
quando eu tinha uns 15 ou 16 anos uma música chamada “garotos II – o outro lado” fez um sucesso avassalador. era o tipo de música capaz de tocar desde nas emissoras de elevador, tipo a alpha fm, até nas rádios intituladas “de rock”, já que o cantor era um cara que tinha feito parte de uma banda de pop rock famosa nos anos 80. então essa caralha tocava o tempo todo, e a mensagem acertava diretamente no alvo de uma certa essência romântica que existia nos coraçõezinhos adolescentes da época, ao mesmo tempo em que se valia de um velho truque, hoje eu acho, muito comum para manter as mulheres no lugar em que elas estão, que é fingir que elas dão as cartas (quando na verdade nunca dão).
nem acho que essa fosse a intenção do leoni, mas toda essa ode dele às mulheres me lembra um verso de “woman is the nigger of the world”: “while putting her down we pretend that she’s above us”, e é esse mesmo verso que imediata e automaticamente me vêm à cabeça toda vez que vejo aquela cena clássica de pedido de casamento, com o homem ajoelhado diante da mulher.
bom ok perdão pelo desvio, eu nem ia falar disso aqui. o meu ponto é: como a expectativa romântica contemporânea, nos anos 90, acho que não diferia tanto da expectativa romântica do “jornal das moças”, e como a estética das músicas, filmes e videoclipes dessa época, e até de antes, moldaram minha expectativa de romantismo e vida a dois.
eu nunca fui a menina cantada em garotos II. eu não tinha peito, nem poses, nem apelos. eu ganhei corpo modestamente e bem tarde; para falar a verdade acho que eu também tentei resistir à puberdade o máximo que pude. enquanto isso, algumas colegas de classe mergulhavam em um universo que eu ao mesmo tempo estranhava e desprezava: faziam tratamentos estéticos, namoravam professores, eram lindas e seduziam.
e eu recebia bilhetes desse tipo das minhas amigas, e mandava bilhetes assim para elas também.
* * *
curiosamente, a menina que me mandou esse bilhete amava “garotos II – o outro lado”. ela não curtia muito música, nem filmes, nem livros no geral. pelo menos não naquela época, de maneira que ela destoava um pouquinho de mim e da roberta, que éramos esse tipo de garota desde a infância. então, ela curtir tanto uma música queria dizer alguma coisa; aquilo devia ter tocado ela de alguma maneira pouco comum.
um ou dois anos mais tarde, quando me vi em um imbroglio amoroso (que acontecia basicamente dentro da minha cabeça) porque em um verão me apaixonei pelo garoto que estava apaixonado pela minha prima (mas o problema só existia na minha cabeça porque essa era mais uma das paixões platônicas que tive por hábito cultivar na adolescência, e ninguém da turma da praia sabia dessa queda que eu tinha pelo sujeito, que aliás começou a namorar minha prima), eu precisava de uma confidente. alguém fora daquele universo de bertioga, onde eu passava os verões, alguém que não fosse me julgar ou me criticar ou, pior que isso, me instar a *tomar uma atitude*.
então ela foi minha confidente, e trocamos longas cartas (isso mesmo, CARTAS – as minhas escritas à mão, as dela digitadas e impressas no computador, uma paixão dela à época) onde detalhávamos nossos dias de férias, e eu contava minhas desventuras sentimentais, que tinham tão pouca implicação no mundo real. e ela nunca falava sobre isso, e eu pensava “mas que garota de 15 anos não está apaixonada?”. bom, ótimo para ela que não estivesse. esse terreno do amor era pantanoso e obscuro para mim, e eu nunca sabia em que pedras pisar.
* * *
para piorar, pouco tempo antes tinha começado a pegar MTV na minha casa, de modo que meu coraçãozinho ignorante e romântico começou a ser alimentado por videoclipes do bon jovi, do aerosmith e etc, com tramas intensas de amor, romance, traição, vingança & devoção (sério, vocês já assistiram “crying”, do aerosmith?, em que a mina FINGE SUICÍDIO, ou “always”, do bon jovi, em que o mano EXPLODE UM APARTAMENTO?). coisas que hoje me parecem apenas uma projeção nem tão bem elaborada, mas amplamente socialmente aceita, de você mesmo sobre um outro incauto.
ah, e ainda havia o pagode romântico.
“cola teu rosto no meu
chega mais perto de mim
faça de conta que eu
sou seu namorado”
tudo isso, hoje eu vejo, funcionava como os componentes de uma solução que ia encharcando uma esponja.
* * *
anos mais tarde me dei conta do óbvio: minha amiga da adolescência, colega de classe por quase uma década, autora de alguns dos bilhetes mais engraçados passados secretamente na aula, fanática por computadores em uma época em que duas ou três pessoas na sala tinham um; essa menina, que na formatura do nosso colégio técnico em magistério, em uma sala de umas 20 garotas recém-chegadas ou chegando à maioridade, decidiu usar terno e não vestido de festa (ela NUNCA usava saias, nem no dia a dia, e o traje que ela usaria na noite da formatura era um mistério estimulado por ela mesma e aguardado com ansiedade por nós outras 19); essa garota que amava “garotos II – o outro lado”... gostava de garotas.
faz todo sentido para mim que ela amasse a música (embora eu não tenha ideia se ela tinha consciência disso à época). a mágica que os versos aferem às garotas era algo com que eu não conseguia me identificar, eu não tinha em mim, nem achava digna de nota nas outras meninas, as meninas que pareciam preencher aqueles requisitos. mas minha amiga, sim, enxergava tudo aquilo.
eu amo demais essa minha amiga, amava na época e continuando amando agora em retrospecto. acho – e sempre achei – ela corajosa, inteligente e engraçada. se eu achava uma barra ser uma adolescente hétero em treinamento amoroso, porque não tinha as expectativas e os marcadores de quem nada de braçada nesse mar, imagina ela.
a minha amiga se tornou uma educadora respeitada e está casada há 18 anos com outra mulher. confesso que eu já pensei em mudar de cidade só para o meu filho estudar na escola que ela dirige. desisti porque eu amo minha amiga, mas eu odeio a ideia de voltar a morar no ABC.
AS PALAVRAS DOS OUTROS
há 300 semanas eu estava lendo “um antropólogo em marte”, do oliver sacks, e encontrando pela primeira vez esta definição discreta que para mim resume à perfeição o funcionamento da memória:
“lembrar é sempre reconstrução, não reprodução”
isso explica muita coisa, como por exemplo o fato de a minha mãe sempre contar uma história sobre um apelido do meu irmão, dado pelas crianças da rua dos crisântemos, que jamais existiu.
acho que toda família tem suas memórias não-vividas e se você olhar de perto para as suas próprias lembranças e falar o suficiente delas, vai descobrir que tem as suas também.
Meu Deus, esse trecho sobre memória 🤯 caramba, tocou muito aqui.