todo mundo tem saudades, todo mundo seguiu a vida
talvez tenha um rato dentro da minha geladeira, ou talvez não.
srs, sras.
olha só, se não é uma newsletter bissexta pintando na sua caixa de entrada em pleno feriado municipal!
falando em feriado municipal, hoje temos algumas impressões sobre a cidade macota lambida pelo igarapé tietê, a capital da solidão e da vertigem, cenário da minha e da vida de mais 11.451.998 de pessoas, segundo o censo 2022.
também republico um texto sobre bertioga, quase minha cidade natal, bertioga que nunca se esgota em mim.
mas começo com a probabilidade de haver um rato morto na minha geladeira.
se você espera algo mais que as perturbações da vida doméstica e as memórias das minhas muitas cidades, NÃO ROLE O SCROLL.
se você acha que vale esperar por mais coisas como estas, e também por coisas completamente diferentes, sabe deus quando, põe seu e-mail na caixinha abaixo. obrigada!
temo que tenha um rato morto dentro da minha geladeira.
é que faz dias que um suave odor de PODRIDÃO tem envolvido a geladeira, como uma névoa. a princípio, como todo cheiro de podridão, era sutil. eu nem sabia se era da geladeira mesmo ou se o milo podia ter largado uma fatia de peito de peru em alguma fresta da cozinha, sabe. acontece.
no começo achei, inclusive, que eu estava imaginando. mas um dia a maria tava perto quando abri a geladeira e olhei para ela sem nem falar nada, e ela olhou para mim e meio que aquiesceu.
ok, então eu já sabia que não tava imaginando. reabri a geladeira e procurei. a maria acha que é um cheiro de verdura. eu acho que é de carne. olhei TUDO. abri cada gaveta, perscrutei cada prateleira. até os vidros de conserva, que naturalmente NÃO poderia ser a origem dessa nuvem misteriosa, foram abertos. nada.
talvez seja uma imaginação coletiva. fechei a geladeira. nisso o dom falou “eu também senti!”. bom, então ou não é imaginação ou é muito coletiva mesmo. mais coletiva do que apenas eu e a maria.
no dia seguinte, à noite, o ricardo sentiu. olhamos de novo a geladeira. tirei a gavetona de baixo. vai que caiu alguma coisa ali atrás? niente.
a cada vez que eu procuro a origem do cheiro e não encontro, ao mesmo tempo em que ele fica cada vez mais forte, minha mente entra em disputa com ela mesma: será que estou louca? como algo que dá indícios cada vez mais prementes de concretude pode ser cada vez MENOS encontrado?
estou sofrendo GASLIGHTING da geladeira. ou do que quer que esteja em decomposição lá dentro.
hoje de manhã dom e eu fomos tomar café e quando abri a porta da geladeira tive a sensação de ter sido SOCADA NA CARA pelo cheiro. a intensidade do odor fez o ponteiro da dúvida, até então oscilando entre verdura e carne (e imaginação), disparar em direção a uma nova graduação anteriormente não ranqueada: RATO.
não é possível.
tem um rato morto dentro da minha geladeira.
ou simplesmente não é nada.
as minhas memórias de bertioga podem muito bem ser inventadas.
eu me lembro de ouvir o barulho do mar à noite quando era pequena, dormindo na casa a dois quarteirões do mar.
me lembro do quarto trancado e do cheiro das esteiras, uma mistura de maresia, areia e limo, que ficavam na garagem. o musgo verde vivo, fofinho, que cobria os muros e o chão do quintal; meu tio raspando aquilo com uma espátula.
eu me lembro de visitar o forte e achar o pátio enorme, as sentinelas imensas. eu pequena.
me lembro de tomarmos banho na ducha fria depois da praia, já adolescentes, cantando red hot chili peppers, as letras que decorávamos naqueles folhetos de escola de inglês.
e um dia os vizinhos cantando de repente, muito alto, suck my kiss do outro lado do muro, isso antes da grande reconciliação, e eu fiquei pensando que eles tinham uma bateria, mas eram só objetos de percussão de improviso. eu soube depois que voltamos a conversar, e viramos grandes amigos.
o som da bolinha de pingue-pongue do lado de lá; os tlecs do peteleco do lado de cá.
às vezes acho difícil acreditar que toda essa bertioga existiu. a rua não tinha nome. a casa eu não sei quando foi feita. as flores brancas não sei a espécie. mesa de peteleco, nunca vi alguém que conhecesse. nem no google achei.
fora que nada na minha vida até agora foi tão longo (exceto eu). bertioga persistiu da minha primeira infância à minha última adolescência. não teve despedida à altura. um dia percebi que mesmo se eu ganhasse na mega-sena, a sonhada solução definitiva para qualquer problema brasileiro, nem isso traria a casa de volta. nem todo dinheiro do mundo. bertioga existiu tanto tempo, bertioga não existe mais.
mas para meu espanto eu desço a serra, pego a rio-santos e chego em bertioga. a cidade ainda existe.
bertioga incontáveis camadas, que se assentam e se misturam umas sobre as outras. as camadas que são minhas e as camadas do tempo dela mesma. mata atlântica, josé de anchieta, tupiniquins, hans staden, as baleias e os pescadores. as camadas da família da qual eu sei tão pouco, e que no entanto me dão a mais firme sensação de pertencimento e aterro. a casa.
bertioga e as camadas novas. meus filhos em bertioga. o indaiá irreconhecível. a orla cheia de prédios bestas. o mar onde eu mergulho ainda é o mar de bertioga. o forte diminuiu, mas cresceu. todo mundo tem saudades, todo mundo seguiu a vida. bertioga continua aqui.
naquele dia eu peguei um ônibus até o centro.
eram 8:58 e eu tinha 50 reais. o cobrador me olhou com cara de poucos amigos e eu fiz um esforço para bancar o olhar (odeio que a galera do ônibus pense que eu sou aquele tipo que usa transporte público tão ocasionalmente que tem o desplante de aparecer às 8 da manhã com uma nota de 50, precisamente o que estou fazendo no momento).
resmungando, ele me mandou sentar na frente, o que fiz prontamente. passei um tempo no twitter e ali pela dr. arnaldo me dei conta de que eu estava perdendo tempo de olhar a cidade. guardei o celular, o que me deu alívio imediato. pela janela vi o emilio ribas e lembrei um pouco de quando fui tomar vacina contra a febre amarela de última hora, para ir para a austrália a trabalho, e do anarquistas graças a deus, quando a zélia gattai fala da dr. arnaldo de terra, dos cortejos para o cemitério recém-inaugurado que elas viam da janela de casa.
eu passei mal no dia da vacina. saí atrasada do apartamento em pinheiros (não me lembro bem de qual) e fui sem tomar café. estava um calor do caralho. minha pressão caiu ANTES MESMO de eu tomar a injeção. me lembro de divisórias brancas e cadeiras de sala de espera pretas, aquelas estofadas e grudadas umas nas outras. muita gente. talvez eu de chinelos. cabeça para o chão. direto pro trabalho.
na dr. arnaldo dá para sentir direitinho o relevo de são paulo, percorrendo a espinha do espigão da paulista, que não é um prédio do futuro do pretérito, quando achavam moderno chamar um edifício de espigão, mas a formação geológica que marca a divisão entre as bacias do tietê e do pinheiros. uma pista da geologia de um cerrado infinito já tão soterrado pelas construções da cidade que mal dá para perceber.
pensei em lá embaixo, onde eu moro agora. daqui, a vila anglo parece lá embaixo.
o ônibus chegou ao cruzamento com a paulista e eu espiei o edifício são luiz, os espelhos azulados refletindo a igreja dos jesuítas ao lado. o prédio, aliás, também é dos jesuítas, assim como o colégio que ocupou seu primeiro andar por décadas; tudo em sp foi dos jesuítas, dos jesuítas e dos bandeirantes, e muita coisa ainda é e nem todo mundo percebe. fundação padre anchieta. rodovia anhanguera. avenida dos bandeirantes.
eu trabalhei dois anos, dois anos que parecem muitos, no edifício são luiz. olhei de longe para o pilotis, onde ficava a redação. se meu olhar fosse uma flecha transpassaria a igreja bem no meio, a igreja onde um dia eu vi na calçada em frente uma pichação em amarelo gritando para devolver a terra aos indígenas. não me lembro da frase. mas foi ali que eu descobri que a igreja era jesuíta. falei que a gente nem percebe?
depois disso você desce a consolação. toda vez que passo em frente ao cemitério penso na marquesa de santos, que fez a doação que desencalacrou o estabelecimento do primeiro cemitério público da cidade, onde ela mesma está enterrada, assim como a tarsila do amaral.
eu não consigo andar por são paulo sem pensar em alguma história, minha, da minha família ou da cidade. círculos concêntricos de histórias interligadas. talvez seja por isso que eu amo tanto essa diaba e seus 470 anos de histórias pessoais.
deixo-vos com alcântara machado,
que certa feita comentou que são paulo era tão feia que tinha “assim um arzinho de exposição internacional”, e que se o próprio anchieta HIMSELF soubesse que a fundação da cidade um dia seria homenageada com um monumento tão medonho – no caso, o glória aos fundadores de sp, que repousa ali no pátio do colégio – nem teria fundado nada.
(a capital da vertigem, roberto pompeu de toledo, companhia das letras)
a história do suposto rato na geladeira me lembrou a semana que passei tentando descobrir de onde vinha um misterioso cheiro que tomou conta da cozinha, pra me deparar com o melão disfarçado. estava completamente normal por fora, mas completamente fermentado por dentro.
Tuve uma geladeira fedorenta uma vez. Descobri depois um dia inteiro na internet que tem algumas geladeiras frostfree que acumulam água descongelada do freezer na parte de trás. Então aquela água de carne e peixe do congelador fica ali só apodrecendo... teoricamente essa água é reutilizada para resfriar a geladeira mas às vezes falha. Tenta ver atrás da geladeira, se tiver um recipiente mesmo vazio pode ser dali. Também vale a pena procurar o manual da geladeira pra checar possíveis fontes de futum. Boa sorte! ;)