não era o dener
quando minha mãe finalmente percebeu que era um assalto começou a empurrar o ladrão para o portão da frente, mas ele queria sair pelos fundos, e precisava de uma ajudinha.
senhores. senhoras.
como prometido, hoje conto a história vencedora da enquete.
também reclamo da galera que acha que “a vida é simples, a gente que complica!”; recupero uma história envolvendo princípios alimentares, uma comida típica de oaxaca e um padrão da minha vida; reproduzo uma memória solta, feito uma figurinha, das coisas que eu colava no meu diário adolescente; parelho-me com o bebê em uma biga e recomendo fortemente um livro.
(por favor, se nos encontrarmos, nunca me diga que a vida é simples e a gente que complica. eu vou fazer essa cara se você vier com esse acinte à inteligência e à capacidade naturais humanas:
).
grata.
no mais, continuem vindo que eu continuo indo (escrever).
HISTÓRIAS DO PASSADO
o homem do machado
bom, então a gente morava nessa casa em um bairro de são bernardo chamado parque espacial (pode rir). e era um bairro residencial meio chique, meio novo rico. a gente vivia em uma rua sem saída, com uma eterna construção de prédios muito altos atrás, que na verdade ficavam em outro bairro, já que nossa casa era nos limites do parque.
e essa casa tinha um portão basculante de abrir na mão, que estava sempre destrancado porque nunca acontecia nada naquele bairro. e um interfone que foi consertado mil vezes e quebrou mil e uma, não funcionava nem com reza forte porque o conduíte tinha algum tipo de infiltração eterna (olhando em retrospecto, dada a umidade que existia pelas paredes da casa inteira, acho que a gente morava em cima de um lençol freático ou da própria saída do aquífero guarani).
então meus amigos entravam e saíam da nossa casa sem serem anunciados, porque o interfone não funcionava e o portão tava sempre destrancado. era uma época em que não existia celular, nem assalto. ou pelo menos a gente vivia como se não houvesse.
e aí numa noite qualquer de sábado minha irmã tava doente, deitada no nosso quarto; eu tava (desconfortabilíssima) numa festa com a roberta e os amigos dela da faculdade de artes cênicas, em algum lugar de são paulo; meu irmão tava na casa de algum amigo do mesc e minha mãe tinha passado o dia deitada no sofá assistindo filmes alugados, quando apareceu um sujeito mascarado – algo tipo uma balaclava, ou talvez um cachecol bem enrolado sobre o rosto, só com os olhos de fora – no MEIO DA SALA, falando meio que em grunhidos.
e minha mãe ficou alguns segundos olhando para aquela pessoa até que disse “dener, tira essa máscara ridícula”.
e ela levou um tempo para entender que o ser humano respondia “não é o dener, onde estão as joias?”, o que deve ter levado minha mãe a um estado ainda mais profundo de confusão mental.
até que ela percebeu finalmente que era um assalto. e o cara estava com um MACHADO na mão (um pequeno machado, de cortar lenha para lareira. mas ainda assim um machado).
e aí minha mãe teve um pânico súbito não por ela ou pelas joias, que não existiam, mas pela minha irmã, que estava deitada no quarto. e decidiu que tinha que tirar o cara dali de casa o quanto antes, e começou a ARRASTAR o cara para a direção da porta da frente, querendo que ele saísse pelo portão eternamente destrancado, onde ela supunha ele ter entrado.
e o cara, por sua vez, tinha a ideia fixa de encontrar as joias (que jamais existiram), e teve que se contentar com algo como 20 ou 50 reais que estavam em cima do balcão da cozinha ou da mesa do santo, não me lembro bem (e minha mãe, no presente momento acometida pela temível VIROSE 2022, não pode esclarecer esta dúvida nem um pouco crucial agora, enquanto escrevo esta newsletter).
e enquanto minha mãe tentava empurrar o ladrão para sair pelo portão da frente, ele puxava minha mãe de volta em direção aos fundos da casa, onde ficavam os quartos meu e da minha irmã e do meu irmão, para crescente aflição dela. até que ela percebeu que o cara queria ir embora, mas ele tinha entrado por trás da casa. assim os dois confluíram para o quarto do meu irmão, vazio, e o bandido pulou a janela, dando em um pequeno vão descoberto onde desembocava também a janela do meu quarto com minha irmã.
e aí, melhor cena da história, o bandido PEDIU PRA MINHA MÃE FAZER ESCADINHA para que ele pudesse alcançar o telhado.
e ela fez – claro, eu também faria e aposto que vocês também.
e lá se foi o homem do machado, com 20 ou 50 reais e uma correntinha que estava no pescoço da minha mãe, não sem antes LARGAR O MACHADINHO no telhado de casa – machadinho esse que minha mãe prontamente adotou para rachar lenha para lareira.
nunca descobrimos a identidade do assaltante. mas definitivamente não era o dener, né.
SÓ OUTRAS PIRAS MESMO
complexo is beautiful
se tem um conselho que eu odeio é “a vida é simples, a gente é que complica”. porque é um conselho canalha demais, além de uma mentira das mais deslavadas.
a vida não é simples. nem necessariamente complicada. a vida é complexa. a vida depende de mitocôndrias, reações químicas entre o sangue e cada célula do corpo, de equilíbrio de substâncias incontroláveis, de dezenas de secreções naturais em doses corretas.
a vida depende de decisões tomadas considerando 3 ou 4 ou 10 cenários possíveis, de gostos forjados ao longo de 10 ou 20 ou 30 interações diferentes, da relação que estabelecemos com os outros, que têm personalidades com relevos multidimensionais, milhares de engrenagens de tamanhos e formas diferentes que se encaixam e desencaixam em movimento infinito no passar das horas e no esbarrar de cada dia.
complexo é lindo, complexo é bom, complexo é sofisticado. complexo não é dor de cabeça, problema, complicação. complexo é um monte de simples aprofundados, e você ser capaz de ler todas essas dimensões.
segundo o oxford, a etimologia de complexo vem do particípio do verbo complecti – 'cercar, abarcar, compreender'.
a gente devia curtir mais as coisas complexas. talvez isso ajudasse a gente a parar de procurar soluções simples – desde achar que um cristal ou uma alma-gêmea vai resolver nossos problemas de saúde mental até eleger um imbecil que promete acabar “com tudo isso que está aí” – para problemas complexos.
PALAVRAS DO PASSADO
por que que a gente é assim?
eu sempre fui uma pessoa não FRESCA, mas com PRINCÍPIOS alimentares. ex: não como bolo de cenoura porque é um bolo de legume (e por que alguém comeria um bolo de legume quando existe o bolo de chocolate?); acho desnecessário comer uva passa(da) em um país que tem frutas frescas o ano inteiro, não vejo porque comer língua, rabo, bochecha e outros cortes do tipo a não ser em tempos de guerra.
meus amigos e meu marido oscilam entre rir dessas coisas e ficar putos com elas (majoritariamente a segunda opção, não sei porquê?).
* * *
o alexandre é meu colega de redação e amigo, e viemos pra ny juntos a trabalho. o ale também é uma das pessoas que mais fica puta quando eu argumento que carne seca é carne estragada (o que eu não tenho culpa se é mesmo).
aí que duas noites atrás fomos comer no Cosme NYC. uns dois terços do cardápio tinha peixe e/ou frutos do mar (que eu não consumo porque peixes são amigos, não comida) e outro terço tava incompreensível pois escrito em espanhol, com termos específicos da cozinha mexicana.
eu tava super a fim de comer uma tlayuda, tipo uma pizza oaxacana, que tinha "chorizo". o garçom explicou que aquele chorizo não era o estilo argentino e tava mais pra linguiça de sangue como conhecemos no brasil mesmo (não preciso nem dizer o que eu acho de linguiças de sangue, né).
reclamei e o alexandre falou: "vamos pedir, tenho certeza que você vai comer e vai gostar, você sempre faz isso", o que me fez contar pra ele uma longa história de como uma vez eu fui parar num restaurante em paris onde nenhum dos garçons falava inglês.
(a garçonete fazia uma mímica com dois chifrinhos na cabeça para explicar pra gente o que era de boi; um dos dois pratos bovinos era língua (vcs já sabem, só na guerra) e eu falei "me traz o outro" assim que ela fez os chifrinhos pro segundo prato. foi assim que eu terminei diante de um prato de chouriço CUJO CHEIRO ME DAVA ENGULHOS, e que o garçom ficou com tanta pena da minha cara que ME DEU UMA SOBREMESA GRÁTIS).
eu tenho certeza, eu odeio chouriço.
de volta ao menu do cosme, fiquei triste porque todo o resto da tlayuda parecia divino: abacate, feijão escuro, molhos diversos. quando chegou o prato da mesa ao lado e era justamente esse, espiei e não vi nada. devia ter tão pouco chorizo que certamente daria pra separar no prato. pedimos o negócio.
* * *
esse prato veio por último, depois de outras duas coisas maravilhosas que eles serviram – veja bem, maravilhosas mesmo, coisa fina, gastronomia nível alto.
não tive dúvida, me atirei a ele como se fosse a última castanha do pacote antes de sobrarem só os pistaches (que considero superestimados, assim como o catupiry. e a democracia, embora esta não seja de comer).
quando faltava só uma fatia no prato, perguntei pro alexandre o que era aquele patê meio marrom DELICIOSO que cobria toda a base de tortilla. "hmmm, parece meio de fígado, mas não é...", arrisquei.
ele me olhou com um sorriso de satisfação e um brilho estranho nos olhos: "não é fígado, mas você tá quaaaase acertando".
era chouriço.
tava uma delícia.
FIM.
—eu recuperei essa história, originalmente publicada em 17 de dezembro de 2016 (quando eu era colega de redação do alexandre e tinha ido a nova york, domenico de uns cinco meses na barriga), porque ela é um resumo perfeito da minha vida, e eu gosto de me lembrar de quem eu sou de vez em quando.—
CENAS DO PASSADO
pra quê, né?
quando eu tinha 12 ou 13 anos, colava as embalagens de cada chiclete e chocolate e bombom que eu comia nas páginas do meu diário (?!).
e minha mãe ficava alarmada: “vai juntar barata!” (?!?!).
(não sei quem era mais louca).
MATERNIDADE E OUTRAS PIRAS
alumbramento
o bebê é uma esfinge. no começo, você nunca sabe o que aquela criatura pode estar querendo, querendo tão desesperadamente que parece poder morrer no minuto seguinte, e matar você junto de desgosto ou desespero. quando para de chorar, o bebê segue impassível, olhando sem julgar – talvez até sem nem sequer ver. decifra-me ou devoro-te.
o bebê é um barato. de repente, a esfinge dá lugar a uma criatura altamente ansiosa por pertencer. e aí ele sorri. e você invariavelmente sorri junto – deve ser o mesmo mecanismo que também ia te arrastar para a morte quando ele morresse; você e o bebê talvez tenham se tornado cavalos pareados em uma biga, presos por um arreio invisível, correndo na mesma direção involuntariamente.
o bebê é exaustivo. ele desconhece os limites do cansaço humano, da razoabilidade da rotina. é só querer, querer, querer; o bebê não pondera. não argumenta. não expõe. ele quer, e quer já, e ele não vai fazer absolutamente nada de razoável na direção daquele querer. no máximo, abrir a boca e esperar o peito. você, por outro lado, argumenta. explica. ralha. depois se sente idiota. ele não vai entender. você não aguenta mais puxar essa biga.
o bebê é um milagre, de frente e verso: o milagre que é ao mesmo tempo o do espanto com o esperado (ele senta e você pensa UAU! ele fica de pé e você MEU DEUS!!!, ele diz alguma coisa deliberadamente, pode ser “mamã” ou “batata”, e você arfa em embevecido maravilhamento) e o do testemunho de uma pessoa se criando (aquele brilho imenso do ímpeto do bebê, puxado pelo ineditismo de praticamente tudo; os olhos frescos que você nunca mais vai ter). alumbramento.
AS PALAVRAS DOS OUTROS
“não é responsabilidade da criança ensinar aos pais quem eles são. é responsabilidade dos pais aprender quem é a criança”
— tudo que é belo, the moth, editora todavia (recomendo esse livro, que eu mesma li depois de recomendação do sukita, COM FORÇA).
Eu gosto tanto de te ler, que bom que está fazendo isso de novo!! =)
Obrigado S2
que lindo o bebê! 💖
que difícil ainda não poder conhecê-lo.