quem não morre não vê deus
o apocalipse de um pequeno universo, a redenção e os amigos imaginários e especulações sobre até quando eu vou ser capaz de agachar
olá srs.
aí que o twitter foi suspenso, né. e, como todos os usuários mais ou menos antigos daquela rede, me peguei em uma miríade de sentimentos dos quais os mais volumosos me pareceram ser melancolia e alívio.
acho que ainda não tive condições de elaborar o apocalipse desse pequeno universo. certo foi o davi, que já tinha o obituário feito desde meados de abril desse ano. quando me dei conta de que ia suspender mesmo, fui atropelada por uma onda de emoções misturadas que me deixaram paralisada, e tornaram inútil qualquer tentativa de organização. devo salvar os meus conteúdos preferidos? devo printar os tuítes clássicos? devo procurar cada voz que ainda me interessa aqui em outras redes? quais?
não são poucas as situações na minha vida em que eu não tenho a menor ideia do que fazer, e essa foi uma delas.
(mas ainda acho que escolher mangas no sacolão é pior. é para pegar as mais verdes ou as vermelhas? moles ou duras? aquela melequinha grudenta por fora da casca é bom ou ruim?).
então peguei aquela extensão lá, que mostrava os perfis no bluesky de gente que você já seguia no twitter, e consegui salvar uns 150 de 500 sugeridos antes de ter que correr para pegar o dom na escola. foi melancólico mas também deu um alívio, porque decidi aproveitar para deixar para trás alguns perfis que eu não tinha ideia de quem eram e outros que eu seguia porque em algum momento achei relevante, mas já não falavam muito que me interessasse de fato.
eu não sei vocês, mas tem uma sensação que me é familiar quando me vejo na iminência de enfrentar algo meio apavorante demais: chega uma hora em que a situação está tão insustentável que lá no fundo percebo que eu quero mesmo que tudo se exploda, SÓ PARA SABER O QUE VEM DEPOIS.
sabe como é. quem não morre não vê deus.
redenção
contrariando a tradição familiar, nenhum dos meus filhos teve um amigo imaginário (até agora).
quando eu era pequena tinha o tio badépi. hoje eu sei que ele surgiu quando vi um quadro de um preto velho encostado no fundo de um armário da casa de praia de bertioga. eram aqueles armários embutidos construídos do chão ao teto, dava para entrar dentro deles e se esgueirar entre as prateleiras e as portas de correr, que cheiravam a óleo de peroba de tanto minha mãe esfregar.
eu tenho uma visão borrada desse quadro, daquele tipo de memória que se segura por um fio e periga desaparecer no ar caso você de fato veja de novo o quadro concreto. o real vs. o imaginário, o imaginado, a imagem do passado.
então o tio badépi era meu amigo imaginário, me contam que eu falava dele e tals. mas eu não me lembro de nenhuma aventura vivida, nem de uma ocasião qualquer, corriqueira, na companhia dele. eu só lembro da lembrança do quadro, a imagem do preto velho, o fumo e um olhar bondoso. e o que os adultos contam.
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minha mãe lembra de ter uma TRUPE DE GNOMINHOS que toda noite fazia companhia para ela. obrigada a deitar na cama na hora de criança ir para cama, ela demorava para pegar no sono. então inventou os amiguinhos, que subiam do chão para a cama pelo braço que ela estendia até o tapete, e depois ficavam escorregando nas pernas que ela dobrava.
não era um ou dois ou três: era uma galera. e eles faziam coisas divertidas juntos (na medida do possível do divertido quando você é uma criança com horários para ir deitar, mas sem horário para pegar no sono de fato).
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meu irmão criou o duduca. o joão passava longos períodos (especialmente para uma criança de três ou quatro anos) sentadinho na curva da escadaria do sobrado lá de casa, bem debaixo de um vitrô onde minha mãe deixava um vasinho de violetas. o duduca morava ali (e pensando bem eu sempre tive a intuição infantil de que ali era de fato uma casa. sabe a sensação infantil do que é uma casa? lembra?).
o duduca dormia em uma caixinha de fósforos vazia. uma vez colocamos um algodão dentro para ficar mais fofinho. depois surgiram outros amiguinhos na turma do duduca, mas desconfio que eu mesma tenha criado (ou induzido o joão a criar) vários deles. lembro do berço dele (do joão, não do duduca) encostado na cama de baixo do beliche, onde eu dormia; toda noite o pedido “vamos dar a mãozinha, tata?” e eu criando um esquema com o travesseirinho de macela dele para apoiar meu braço e enfiar a minha mão dentro do berço sem doer na madeira dura; a gente conversava um pouco e ali nessas conversas acho que surgiram outros personagens.
a família foi adicionando histórias do duduca: aquela vez em que o joão paulo fez todo mundo sair do carro já pronto e carregado para a viagem e voltou para pegar o duduca que ele tinha esquecido em casa (ainda bem que ele lembrou ainda na garagem). o desenho do amiguinho invisível que o joão fez (desse me lembro bem, uma bolinha com pernas compridas e bracinhos modestos).
mas, é claro, o joão pode se lembrar de tudo isso de uma forma totalmente diferente.
as imagens do passado, sabemos bem, se misturam demais com o que aconteceu de fato no passado.
a gente vai dando camadas e melhorando as nossas histórias. às vezes um acontecimento muda tanto ao longo das reproduções que se transforma em algo capaz de despertar um sentimento totalmente oposto ao que tivemos quando aconteceu. é assim que histórias de assalto podem ficar divertidas ou que o nascimento do meu irmão virou a melhor coisa da minha vida (quando na hora em que aconteceu foi a pior até então).
isso se chama redenção, e meio que depende das histórias que a gente é capaz de construir, contando e recontando, para os outros e para nós mesmos.
uma mania irônica de arruinar belezas
eu pensei em um jeito irreversível de estragar por completo “jealous guy” mesmo que na versão irretocável do donny hathaway:
ATENÇÃO! PARE AQUI SE NÃO QUISER ESTRAGAR POR COMPLETO “JEALOUS GUY”
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OUÇA QUE LINDA CANÇÃO E PENSE BEM!!!
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ÚLTIMO AVISO OK?
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botar como trilha de um filme meio ao estilo de “psicopata americano” bem na hora de um feminicídio. BUM!, pronto. foi mal.
coisas que perdemos (ou vamos perder) pelo caminho
pensando aqui como em 15 anos eu passei de ter como objetivo de vida me tornar a “j-lo de pinheiros” (na época em que comecei a fazer academia no bairro, mais ou menos ao mesmo tempo em que notei que a minha bunda estava descendendo) para “ser uma véia do sesc” (tema do meu último tuíte que hitou na rede que acabou de viver um apocalipse).
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outro dia não eram nem 8h da manhã e eu já tinha fodido minhas costas. senti a fisgada quando fui colocar o milo na cadeirinha do carro ao mesmo tempo em que segurava a mochila da escola no outro ombro. tem coisas que não dá mais para fazer, e a gente demora um bocado para perceber. até porque são coisas bobas no geral. não é que não dê mais para segurar o xixi, subir e descer do ônibus ou agachar (ainda).
eu sinto a meia-idade chegando.
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quando eu vou treinar no sesc dou preferência por usar os armários mais rentes ao chão. é que uma vez eu vi uma mulher mais velha reclamando que não tinha armários livres, gentilmente apontei para ela um aberto nessa fileira mais de baixo e ela falou resignada, mas sem autopiedade: “não, esse aí não dá”. aí entendi. você precisa agachar para guardar suas coisas ali, digitar a senha e travar.
se eu tiver sorte, provavelmente vai chegar um dia em que não vai mais dar para eu agachar também.
eu não sei quase nada sobre envelhecer, e tenho a impressão de que como tudo na vida é algo que precisa de letramento. a gente precisa aprender a ser velho.
me lembro de uma noite uns 10 ou 15 anos atrás em que fui ao shopping, um programa que geralmente me deixa baixo-astral, e fui salva pela visão de várias idosas tomando chopp na praça de alimentação. assim, não é que elas tinha 60, 65. elas eram BEM velhas. tinha uma de andador. muitos cabelos branquinhos. tailleurzinhos, casacos, camisas, maquiagens, algumas bengalas apoiadas ao redor da mesa, um monte de copo tulipa cheio e um papo animado.
fiquei muito impressionada. aquelas senhoras pareciam minha avó, que eu nunca vi fora da casa da vila alpina ou nas casas de familiares, ou de mantilha indo na igreja.
veja bem: minha avó era uma mulher ótima. pouquíssimo estudada formalmente, tinha uma cabeça e um espírito extremamente abertos. nunca ficava julgando as escolhas dos outros ou falando mal da vida alheia. sempre teve uma postura respeitosa com o modo de vida de qualquer um. mas ela simplesmente não teve uma história em que coubesse tomar chopp com as amigas numa noite de sexta-feira no shopping higienópolis (e o fato de ela ter nascido em uma fazenda de café em itu, estudado até a 4ª série do primário, se mudado para são paulo, trabalhado em uma fábrica de tecidos até se casar e morado a vida quase toda ali na vila alpina diz muito sobre isso).
quando a gente não tem letramento, a gente aprende o que a gente vê. tendo visto praticamente só a minha avó como modelo mais próximo de envelhecimento, eu não tinha ideia que dava para envelhecer de outros jeitos. acho que por isso me espantei com a cena corriqueira daquelas velhas tomando choppe no higienópolis, e foi ali que me dei conta de que também existem outras maneiras.
AVISO FINAL: tô lá no bluesky com a mesma arroba do finado (@clarissaaa) e no threads com a mesma arroba do insta (@clapclapcla).
E, PARA ENCERRAR, UM POST DE UM ANO ATRÁS (porque, vocês sabem, a próxima edição pode demorar):
eu já tinha desistido do twitter desde que ele virou x, mas não consigo excluir meu perfil, porque preciso de um código de verificação que nunca chega. quem sabe agora seu musk me deixe enterrar de vez minha arroba, já que agora parece que a rede morreu mesmo. 😅
vem cá, mana, me dá um abraço. tamojunta na meia idade, hahaha
quer dizer, acho que já passei da meia. tô um pouquinho na tua frente e posso afirmar com convicção: dá pra ser diferente, sim.
te convido a ler as coisas que escrevo sobre isso. por exemplo esse: https://open.substack.com/pub/alenahra/p/miranda-july-na-menopausa?r=tvsh&utm_medium=ios