a marca indelével da alegria
a gente pensa que antigamente todo mundo era velho, mas na real todo mundo tá desde sempre pixando, achincalhando e esculhambando, olhando bem na cara do amor e dizendo "melhore kirido"
sras, srs
hoje, sem mais delongas, subscrevo-me.
a marca indelével da alegria
faz algum tempo já eu tava fazendo café de manhã e o shuffle do spotify meteu DO NADA um “na tonga da mironga do cabuletê”, versão do simonal.
enquanto a música tocava, o café pingando fazendo plic-plac no metal enchendo a garrafa térmica, eu pensei também do nada nos adultos da minha infância e tão do nada quanto me dei conta de que eles eram muito felizes.
quer dizer, do nada não foi.
a música me lembrou que quando eu era pequena. as férias em bertioga que duravam o que parecia ser o verão todo, e de fato nunca eram menos de dois meses. a casa enchendo e esvaziando tantas vezes que não dava para contar. se durante a semana éramos muitas crianças e algumas mulheres, no final de semana e nos feriados apareciam os homens, pais, os amigos de faculdade, os amigos de firma, as outras mulheres que trabalhavam, conhecidos, agregados e eventualmente um primo da amiga da vizinha de alguém – lembro de uma pessoa específica que eu não tenho a menor ideia de onde brotou; ela chamava katy (caty? kat?) e dirigia MUITO devagar, tipo 40km/h na rio-santos.
e nessas, os adultos brincavam de mímica, com nome de música ou de filme. e as regras do jogo foram ficando mais e mais elaboradas conforme eles jogavam e se deparavam com impossibilidades ou situações até então imprevistas mas que configuravam grande desequilíbrio ou injustiça na competição. tipo os espertinhos que passaram apenas a apontar para uma coisa ou outra para quitar a fatura (tipo indicar a caixa d’água e um calendário quando era “águas de março”).
eles estabeleceram, por exemplo, que podia “cortar” até 3 palavras, e usar a contagem do alfabeto até 2 vezes (ou vice-versa). acho que também baniram títulos que fossem apenas nomes próprios. ou as palavras tinham que existir no dicionário, acho? não me lembro. eu sei que “na tonga da mironga do cabuletê” gerou alguma regra.
os adultos da minha infância foram muito felizes. eles bebiam, riam, cantavam, fumavam. eles brincavam e deixavam as crianças brincar junto. estendiam o feltro verde de um jogo de roleta na mesa do jantar, apostavam feijões, viravam a noite conversando, contavam histórias de terror e da infância deles. tomavam sol e banho de mar. eles paqueravam, transavam, brindavam. zoavam uns aos outros. criaram filhos jovens e fizeram muita cagada, mas não sei se eles têm ideia da potência que é, da marca indelével que faz, ter um adulto feliz te criando.
*
(rindo um pouco agora que notei que nesse parágrafo descritivo da alegria de vida dos adultos tem jogo, cigarro e bebida).
antigamente é que era bom
eu gosto mesmo é da esculhambação, especialmente da esculhambação das antigas. de certa maneira volto ao tema: a gente pensa que antigamente todo mundo era velho, mas na real todo mundo tá desde sempre pixando, achincalhando e esculhambando, seja porca – chamando os amigos de “celerado” – ou elegantemente – com desinências latinas:

esculhambação elegante, aliás, é essa campeã de audiência do noel rosa, gravada em 1935, aquele tempo empoeirado, preto e branco e cheio de chapéus, paletós e gravatas (o próprio noel sempre aparece sério e paramentado naquelas fotos preto e brancas, mas era obviamente um FANFARRÃO, né).
esculhambar também foi o que escreveu o nome de alexandre ribeiro marcondes machado na história. nascido em 1892, com esse nome classe média e uma graduação em engenharia na poli-usp, talvez a última coisa que você esperaria desse sujeito fossem poemas hilários descambando com o grande, intocável, parnasianíssimo poeta olavo bilac, escritos em um registro inesperado: o dialeto dos imigrantes italianos que por algum tempo ali na virada do século foram maioria populacional na cidade de sp.
mas foi exatamente isso que ele fez, e muito mais, e sob o pseudônimo juó bananére.
(eu sempre leio os poemas do juó bananére meio que com a entonação de fala dos meus avós, que vieram de itu para a capital depois de crescerem nas colônias de italianos que plantavam café. fica perfeito 🤌).
(aqui tem uma coisa linda: uma digitalização da primeira edição do livro do qual esse poema foi tirado, o la divina increnca, numa cortesia do legado dos bibliófilos guita e josé mindlin).
falando em poema, tem aquele do camões que não é bem uma esculhambação, mas olha a audácia dessa fudida: no famoso soneto “busque amor novas artes novo engenho” luís de camões, nascido praticamente na IDADE MÉDIA, olha bem na cara do amor e diz “kirida, melhore (se quiser acabar comigo)”. 👁👄👁
camões nasceu em 1524. menos de 40 anos depois, piratas franceses foram rechaçados pelos portugueses no recife. um deles simplesmente deixou nas pedras um PIXO IRADO – sim, em 1561 – que desde então tem dado a tônica de como volta e meia a humanidade se sente (exceto talvez durante a belle époque): “le monde va de pis en pis” – ou “o mundo vai de mal a pior”.
depois da febre
eu faço ginástica (já me disseram para eu parar de usar essa expressão porque pareço uma velha mas eu sinceramente não sei que mal tem em parecer uma velha, especialmente porque estou ficando velha mesmo) no sesc pompeia.
treinar (kkkk que tipo de pessoa eu sou agora, um gen z?) no sesc pompeia tem vantagens inegáveis, que são basicamente fazer exercício dentro de uma obra da lina bo bardi, com acompanhamento profissional e bom equipamento, por 48 paus ao mês.
e o ginásio ainda tem vista para o pico do jaraguá.
(sp intensifies).
*
e foi bem no sesc que eu peguei essa cena. a mulher devia ter uns 70 anos1. eu vi ela de longe, mas não imaginei a idade de cara. só depois. ela saiu do prédio onde fica a piscina e atravessou o deck de madeira, assentado por cima do que resta do córrego água preta, até o prédio dos ginásios, e deve ter sido a determinação com que ela andava, com aquela caixa branca sem jeito debaixo do braço, que capturou meu olhar.
me distraí e quando vi ela estava entrando no elevador comigo e um punhado de outras pessoas. senti o cheiro e me dei conta de que a caixa branca, que era de isopor, estava cheia de gelo e peixe. ia me debruçar sobre por que uma mulher com roupa de ginástica, uns 70 anos, aparentando ter sempre certeza do que está fazendo, pegaria o elevador do prédio dos ginásios do sesc pompeia com um isopor de peixe debaixo do braço.
mas não deu tempo: o elevador parou no primeiro andar e entrou um grupo de professores de atividades físicas. a mulher cumprimentou com beijinhos todos eles, sendo particularmente efusiva com um, a quem ela chamou de “meu gustavo miotto”, garantindo que falava para todo mundo que ele era seu gustavo miotto.
o professor respondeu: “só se for depois da febre”, e todos riram (eu inclusive).
mais um ou dois andares, a mulher muito decidida e efusiva que ia fazer exercício carregando peixe num isopor desceu jogando beijos.
outra mulher que devia ter a mesma idade mas nem metade da energia (pelo menos naquela manhã) perguntou “quem é gustavo miotto?”.
e o professor respondeu “não tenho a menor ideia, mas ela sempre me fala isso”.
chegou no sexto andar e eu desci.
e desde então tomei sempre o cuidado de nunca googlar quem é gustavo miotto.
não tenho certeza, adivinhar idades é um negócio muito traiçoeiro, ainda mais depois que os 30 viraram os novos 20, os 40 viraram os novos 30, os 50 viraram os novos 40 e dos 60 para cima você é obrigado a falar que está na “melhor idade” (o que eu também não sei se é lá muita vantagem).
E assim, tive que googlar Gustavo Miotto.
Ai que coisa mais linda, Clarissa! Tava esses dias mesmo conversando com uma amiga do quanto me fez falta, enquanto criança, de ver adultos se divertindo ao meu redor. Era só trabalho, trabalho, perfomance, matar o leão de cada dia. Num verão fui passar uma semana na casa de uma amiga bem assim como você contou, com alegria, e foi um choque, nunca me esqueci. O pai dela ligou o som do carro bem alto e abriu a porta no quintal pra todo mundo ouvir, fizemos guerrinha de espuma, éramos vários adolescentes, tinha brincadeira o tempo todo, adultos rindo, macarrão com salsicha, éramos felizes e sabíamos. Guardei pra sempre essa energia na memória <3