tudo é memória
de quando a gente tentava empurrar quinquilharias pros adultos em troca de grana pro sorvete, ali pelo mesmo ano em que o presidente do brasil tirou a pior fotografia que alguém vivo (?) já tirou
hoje eu tava pensando “nunca mais fiz a newsletter”. e aí resolvi fazer.
normal, né. eu disse para vocês que fiz a newsletter porque sentia falta de conversar, mas às vezes a gente fica sem assunto mesmo.
ou PENSA que fica, porque quando abre a boca, minha nossa senhora!, de repente desata aquela tagarelice insuspeita.
talvez seja o caso, talvez não.
hoje, vocês vão ver, tudo é memória: dos meus amigos da praia, do meu tempero pra carne de soja, de quando a foto que publicaram para tranquilizar o brasil na verdade só piorou a situação.
eu penso muito sobre o tempo, vai ver por isso não tem sobrado tanto tempo para escrever.
perdoem. e perseverem, por favor:
VELHO É O MEU PASSADO
meus amigos da praia
na primeira semana de abril, pela primeira vez na vida, eu dirigi pela cerro corá todos os dias.
a cerro corá é uma avenida razoavelmente conhecida na zona oeste que agora fica perto de casa. eu a peguei todas as manhãs, de segunda a sexta, porque é ela que me leva até a escola do milo – e ele estava fazendo o período de adaptação (ainda está, tecnicamente, porque ficou com coriza e foi barrado temporariamente, normal, tempos estranhos, né?, tá certa a escola mas também quem é que não está com coriza esses dias, meu deus?, e depois vieram aqueles feriados sem fim e o coitado ia para a escola na frequência do halley, uma vez a cada 76 anos, mas agora PARECE que vamos chegar ao fim, enfim).
o fato é que TODAS AS VEZES que eu peguei a cerro corá fui inundada por um bem-estar difuso provocado pela memória iluminada de pessoas que eu não vejo há mais de 20 anos. gente de importância e impressão tão fortes na minha vida que, mesmo depois de mais de 20 anos, são a única coisa que invade minha cabeça enquanto eu dirijo pela cerro corá.
*
bertioga é a cidade em que meu pai nasceu e onde eu passei as férias de verão minha vida inteira até pouco depois de os meus pais se separarem e a velha casa dos pais meio adotivos do meu pai ser vendida.
ela ficava no jardim rio da praia, perto do sesc bertioga, um portão de madeira, gramado, varanda e um murinho baixo que dava para a casa dos vizinhos.
a casa dos vizinhos era dividida por alguns irmãos que tinham cada quais os seus filhos. primos que tinham idades bem próximas às nossas.
a gente ficou amigo na infância e fazia desenhos com cola e areia, além de esculturas com palitos de sorvete recolhidos na praia (eram os anos 80, ninguém jogava NADA no lixo e ninguém via o risco de catar palitos babados por estranhos por aí). depois a gente abria um guarda-sol, botava tudo embaixo (chamávamos nosso empreendimento de barraca arco-íris ou eu sonhei?) e tentava empurrar nossas quinquilharias pros adultos em troca de dinheiro para comprar sorvete (e quem sabe continuar um ciclo sem fim de artesanato de palitos, pelo menos dessa vez babados por nós mesmos).
depois a gente cresceu um pouco e, quem sabe constrangidos pela nossa antiga joint venture, começamos a fingir que não nos conhecíamos.
e aí crescemos mais um pouco, e começamos a mexer com os meninos mas sem nunca falar com eles. cada um do seu lado do murinho. e eles retribuíam.
a situação era tão ridícula que um dia o pai do hugo botou a cabeça pro nosso lado do muro e falou “oi, tudo bem? então, esse aqui é o hugo, e vocês?” ou algo do tipo, e reconectou todo mundo.
e a gente virou melhores amigos demais (bom, pelo menos do meu ponto de vista).
o hugo era irmão da helga, que era um pouco mais velha e muito mais doce que todo o resto. eles eram primos do marcelo e do mauricio. os quatro conheciam todos os veranistas do bairro, e através deles conhecemos uma porrada de gente – mas não me lembro de mais ninguém que valesse a pena, todos viraram rostos de traços meio diluídos, às vezes não me lembro nem dos nomes; ou me lembro mas preferia não, ou não faria diferença não lembrar.
nossos vizinhos de praia, os caras que por dois meses do ano e alguns feriados moravam a meio palmo de distância da nossa casa, em são paulo moravam longe, muito longe, uma distância inominável para uma menina de são bernardo do campo que não tinha carta de motorista: perto da cerro corá.
eles eram gentis e engraçados. bertioga, que eu já gostava tanto, virou talvez o meu lugar preferido de estar. o murinho entre as casas se diluiu; eles entravam e abriam a geladeira e organizavam a fila e as duplas para a disputa de peteleco (um jogo de mesa de que nunca mais ouvi falar depois que meu pai e meu tio – aquele da piada do camelo – apareceram em bertioga com aquela mesa). eles dirigiam e a gente ia na caçamba (eram os anos 90, ainda se usava rayito de sol e passeio na caçamba da picape pilotada por menores de idade). eles falavam merda, inventavam músicas, repetiam piadas, e a gente ria.
a gente começou a se ver em são paulo. me lembro deles no meu aniversário surpresa de 16 (?) anos, na casa da gabriel de souza em são bernardo; eles sempre zoando que a gente morava no interior; eu sempre respondendo que, geograficamente, a gente morava mais perto do litoral que eles, portanto, eles moravam mais no interior que nós. me lembro da padaria letícia e da rua toneleros como as referências dadas pelo marcelo para quando a gente se aventurou, minha irmã novíssima de carta, a chegar lá de sbc até a casa deles em são paulo.
cada dia que passei pela cerro corá, semana passada, foi um fio desses sendo puxado no novelo da memória: a padaria letícia, a rua toneleros, a visão da minha irmã descendo e a gente saindo do prédio do marcelo para voltar para são bernardo do campo, o marcelo pegando a gente na praça panamericana para irmos a um festival de reggae (não me perguntem).
e aí a casa de bertioga foi vendida, eles já estavam na faculdade (todos em diferentes engenharias, se não me engano; a helga já em jornalismo), nós continuávamos sendo umas fudidas de são bernardo do campo sem muita mobilidade para atravessar a imensa área conurbada até as casas deles, as agendas se fechando com estudos, estágios, namoradas, empregos.
mas não tem um dia que eu passe na cerro corá e não pense, cheia de amor, nos meus amigos da praia. de maneira geral eu não entendo essa mania tão popular de reunir a turma do terceirão ou marcar um bar com o povo da faculdade; eu poderia PAGAR para não ter que rever a maioria das pessoas do meu passado. mas os meus amigos da praia hoje eu talvez fosse de ônibus até são bernardo do campo para encontrar.
MAS EU TAVA CERTA!
comida
uma vez eu e o iran travamos o seguinte diálogo:
— amiga, você faz proteína de soja?
— faço, sim!
— e cê gosta?
— pô, fica uma delícia.
— então, tô começando a comer de vez em quando, o que você põe para dar gosto?
— bacon.
eu levei um tempão para entender (até hoje eu não tenho certeza se entendo) porque o iran ficou me olhando com aquela cara.
VELHO É O MEU PASSADO
pistas do que é ficar velha
— texto publicado originalmente em julho de 2020 no não tão bom, mas muito velho satisfeita, yolanda.
em 1985 o Brasil ia ver a posse do primeiro presidente civil depois de 21 anos de militares no poder. e esse cara era o tancredo neves. como desde 1500 o brasileiro não pode ter um minuto de paz, tancredo passou mal na véspera da posse e foi internado. depois de longos dias no hospital e um país inteiro ansioso, resolveram tirar uma foto dele pra tranquilizar a população.
essa foi a foto.
pois é.
três horas depois do clique, tancredo teve uma hemorragia, foi transferido para são paulo e morreu em pouco menos de um mês.
e nós ficamos com o autor de “marimbondos de fogo”.
*
não é de hoje que eu tô ficando velha. sei bem disso desde que notei, uns 10 anos atrás, que havia uma geração convivendo muito próxima de mim que nunca tinha usado ficha de orelhão, virado um disco de vinil ou revelado uma foto.
(aliás, a tecnologia fotográfica de 1985 explica muito da foto do tancredo: não dava para ver na hora como a imagem tinha ficado. ok, bom o tancredo num tava, mas naquele segundo específico talvez estivesse só meio que piscando ou a caminho de espirrar.
de fato, tem uma outra foto dele com a mulher, Risoleta, tirada na mesmíssima ocasião. e nela ele parece bem melhor:
).
então, eu achava que sabia como era ficar velha porque tinha experimentado tecnologias rapidamente datadas, como ver filmes alugados em uma LOCADORA, onde você tinha que ir PRESENCIALMENTE, buscar uma cópia FÍSICA do filme — como se eu fosse uma escriba suméria.
mas eu estava enganada. agora vejo que há uma outra camada no envelhecer, e provavelmente haverão muitas outras, e aquela, coitada, era só a primeira.
agora eu percebo que, falando das locadoras de filmes ou do processo de revelação fotográfica, eu devo estar soando exatamente como minha avó quando falava do lambe-lambe.
*
faz trinta anos que os anos 90 começaram e minha adolescência meio que também. entrei na sexta série. mudei do bairro assunção pra casa da gabriel de souza. coloquei aparelho. a mtv estreou. new kids on the block. engenheiros do hawaii. feirinha hippie na praia. pulseira bate e enrola, brincos de plástico fosforescente, análise sintática, feira de ciências. adesivos e chiclete importado de melancia, tartarugas ninja no arcade. querido diário, o menino que eu gosto encostou no meu braço hoje. querido diário, o menino que eu gosto começou a namorar outra menina.
trinta.
anos.
*
também faz mais tempo do início dos anos 80 até agora do que fazia da chegada do homem à lua até o início dos anos 80, e quando me dei conta desse fato é que alguma coisa acendeu dentro da minha cabeça.
porque assim: eu tava lá no início dos anos 80, e as coisas eram meio caídas, de fato, mas quando o homem foi à lua NÃO TINHA TV A CORES, sabe?
resumindo, os anos 80 foram logo ali, porque EU ME LEMBRO. e o homem na lua faz séculos, fazia séculos desde que eu nasci, porque eu não vi acontecer; só peguei relatos de segunda mão. ficar velho talvez seja ter a sensação de que não faz tanto tempo das coisas que você viu.
camadas
sete anos atrás, em 27 de abril de 2015, eu postava essa foto, que já era velha naquela época. foi tirada no death valley, pelo cara que no dia seguinte viraria meu marido, um dia antes de a gente casar em las vegas, em junho de 2014.
e se você chegou agora, tem mais memória aqui:
os bons tempos nunca existiram (existem só “tempos”, o “bons” é bondade sua)
velho é o meu passado (a edição que deu origem à retranca)
“desquitada e morando de favor” (reminiscências do meu bairro antigo)
eu não sei se existe um equivalente literário para o termo "confort food" mas é perfeitamente o que eu sinto quando você escreve sobre as férias na casa de bertioga (desde o ~garotas - talvez meu passado também não seja tão novo), e eu não conheço você, nem bertioga! muito obrigada! <3